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Divinas Divas | Crítica

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A liberdade de ser quem você é

Leandra Leal praticamente nasceu no teatro. Filha de atriz e neta de produtor cultural, ela representa a terceira geração de artistas. Sua família é dona do teatro Rival, no Rio de Janeiro, e ela cresceu brincando em seus bastidores e camarins, tendo contato com os artistas e aprendendo com eles. Foi lá que ela conheceu as divas Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios, que foram a primeira geração de artistas travestis do Brasil. Elas começaram a se apresentar ainda na década de 1960, em plena ditadura militar.

Aos 70 anos de idade elas ainda cantam, dançam e surpreendem a sociedade com seu talento. A diretora resolveu reuni-las em mais um espetáculo e filmar o documentário Divinas Divas. Em cima do palco e conversando com a câmera, vemos as divas contando suas histórias.

Para Leandra Leal, o que marca as divas é a liberdade: “ser artista no Brasil não é fácil e sobreviver fazendo arte até os 70 anos é quase impossível. Elas conseguiram! Eu sempre busquei como atriz a mesma liberdade que vejo nelas. A liberdade de ser quem você é no palco e, principalmente, ser quem você é na vida”.

Por trás do palco, vemos as costas das estrelas do espetáculo, encarando o público.

Ser quem elas são, em uma sociedade machista e conservadora, fez com que suas trajetórias sejam de combate e enfrentamento, cada uma a sua maneira. Com histórias similares em alguns pontos e muito diferentes em outros, elas falam sobre os confrontos com a polícia, os perigos do uso indiscriminado de hormônios em uma época em que não se conhecia direito os seus efeitos, suas apresentações na França, Espanha, Argentina e nos Estados Unidos e o contato com artistas internacionais. Falam sobre suas famílias, sobre política, sobre a cirurgia de mudança de sexo e sobre seus amores.

“Eu maquiei a Tônia, a linda Tônia Carreiro, e metade das estrelas do cinema brasileiro. Maquiei enquanto era Astolfo”, conta Rogéria. “Enquanto eu maquiava defendendo o meu emprego, eu perguntei uma noite para a Fernanda Montenegro ‘como é estar no palco?’ e a diva me respondeu ‘estar no palco, minha querida, no cinema ou na TV, é viver uma outra vida, ser outra além de você’. Então eu deixei um cabelo, fiz o que sempre quis. Passei um batom vermelho e fui ser estrela em Paris”.

Rogéria, se maquiando. Abaixo, a frase: Fiz o que sempre quis. Passei um batom vermelho e fui ser estrela em Paris.

No estrelato, no entanto, nem tudo foi glamour, ainda mais para um grupo transgressor e pioneiro de artistas, em uma das épocas mais opressoras da história do país. A década de 1960 “era um momento horroroso do Brasil politicamente. Mas nós tínhamos de ficar caladas”, lembra Rogéria. “Nos vestíamos de mulher, estávamos na fronteira do precipício. Eu ia arrumar confusão como? Eu já era a confusão. Eu estava vestida de mulher e nem o pau eu tinha cortado. Isso é muito emblemático. Ninguém falava em política. A gente ficava horrorizada, calada, e deixavam a gente trabalhar. Foi um ‘bum’, o brasileiro não tinha para onde ir, todo mundo fugindo do golpe. Os únicos que podiam divertir o brasileiro eram quem? Nós! Foi assim que tudo começou”.

Apesar de terem público, as coisas não eram fáceis e a ditadura dificultou muito o trabalho delas. “Eu achava que essa carreira de travesti de teatro não era promissora. A gente não era levada a sério. Nós éramos proibidas de tudo. Não podíamos nem fazer televisão”, relata Camille K. “Fazíamos um espetáculo e não podíamos dar entrevista. Para sair nas revistas, as fotos tinham que ser todas censuradas. Na porta do teatro tinha que ter carimbo da censura. Tínhamos que fazer sessões para a censura para poder estrear o espetáculo. Era tudo muito complicado, era tudo proibido”.

Além dos relatos das artistas, o filme traz manchetes de revistas e jornais da época, que nos permitem avaliar como era a relação do público e da imprensa com as divinas divas, além de termos acesso a fotos delas e de suas apresentações.

O longa-metragem mostra também os ensaios do espetáculo novo e, nos bastidores, presenciamos tanto discussões entre elas quanto cenas de companheirismo, podendo acompanhar as reuniões do grupo cheias de lembranças. A obra marca também a saudade e a despedida de Marquesa, que faleceu em 2015, antes do lançamento do filme.

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Marquesa, na primeira cena do filme.

Divinas Divas estreia nos cinemas hoje, dia 22 de junho, como parte da programação da Sessão Vitrine Petrobrás, mas já acumula uma excelente trajetória por festivais nacionais e internacionais.

Recebeu no Festival do Rio do ano passado o Prêmio de Melhor Documentário pelo voto popular e foi eleito Melhor Documentário pelo Prêmio Felix. Ganhou também o Prêmio do Público na Mostra Global do Festival SXSW, do Texas (EUA), e os prêmios de Melhor Filme pelo Júri Popular e Melhor Direção, no 11º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa.

Participou do Hot Docs (Festival Internacional de Documentários do Canadá), em Toronto; da Mostra de Cinema de Tiradentes; da 40ª Mostra Internacional de Cinema e do Festival Mix Brasil, em São Paulo.

Com um sucesso desses, só podemos concordar com Fujika de Halliday, que afirma no documentário: “Ser diva é uma coisa muito séria”.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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