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De princesa a sultana |Jasmine no novo filme de Aladdin

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“Chegou a hora do mundo mudar
Essa história é antiga
Uma princesa não deve falar
Não há o que eu não consiga”

Jasmine cantando Ninguém me cala

Já ouviu falar da “Jornada do Herói” (também conhecida como monomito)? Para auxiliar roteiristas e escritores em seu processo de criação foram enumerados estágios necessários a qualquer história, como um passo a passo a ser seguido. Essa estrutura narrativa clássica foi destrinchada pelo norte-americano Joseph Campbell e lista os pontos mais importantes para a criação de uma história.

De forma resumida: primeiro deve ser apresentado o dia a dia comum do protagonista. Em seguida, surge o chamado para uma aventura que mudará toda a sua realidade e virará seu mundo de cabeça para baixo. Após obstáculos e conflitos, com o enfrentamento de um inimigo (seja qual for), a ajuda de um mentor e de parceiros, o protagonista vence seu maior desafio e encontra um tesouro (literal ou figurado). Transformado pelas experiências que vivenciou, nem a sua vida nem o personagem serão os mesmos.

Associada a arquétipos e histórias lendárias, essa estrutura é seguida pela maioria das obras de sucesso no cinema: Rei Leão, Hércules, Mulan, Harry Potter, Senhor dos Anéis, Matrix, Star Wars, dentre centenas de outros. Mesmo sem conhecer o conceito e sua estrutura, é fácil identificá-lo nos filmes que assistimos desde a infância e perceber esse padrão.

Rey e Luke Skywalker

Por esse motivo, sempre achei estranho que a Disney tenha ficado marcada por suas princesas clássicas. Personagens que ficaram conhecidas, que vendem produtos, com quem as crianças querem tirar fotos nos parques até hoje. Personagens que ultrapassaram décadas sem serem esquecidas. Estranho porque esse nicho de princesas originais contém personagens femininas praticamente sem fala e sem ações, que não se destacam e não são protagonistas nem mesmo de suas próprias histórias.

O formato antigo previa o desenrolar narrativo clássico, com salvamento, vítima, vilão e herói, mas que enfatizava a fragilidade da princesa para engrandecer a trajetória do seu salvador. Sem desmerecer os filmes ou seus fãs, mas não há como negar que várias das primeiras princesas da Disney, incluindo Branca de Neve (1937), Cinderela (1950) e Bela Adormecida (1959), existem apenas como espectadoras da história (ou pior, como o tesouro a ser recebido no final). 

Em Branca de Neve, os anões perseguem a bruxa até a sua derrocada, logo antes do príncipe salvar a jovem presa em um sono eterno. Em Cinderela, o príncipe busca sua “amada” pelo reino, determinado, testando o sapato de cristal no pé de todas as moças da região até encontrar a mulher que conheceu no baile e tirá-la da vida miserável em que se encontrava. Phillip enfrenta uma parede de espinhos, um dragão e diversos perigos para salvar mais uma princesa adormecida.

As “protagonistas” aguardavam (dormindo) e dependiam do beijo de um estranho, ou de um fator externo qualquer, para não morrer, para não ficar (literalmente) sem voz ou para se livrar do sofrimento gerado pela madrasta. Apesar dos filmes levarem seus nomes, as jornadas não eram delas. As aventuras, desafios, obstáculos e vitórias eram de outras pessoas. 

A pequena sereia Arial perdendo a voz

Com o tempo, acompanhamos, aos poucos, essa estrutura da Disney mudar. Vimos Pocahontas (1995) impedir uma guerra; Mulan (1998) salvar um império; Valente (2012) conquistar a sua própria mão com as habilidades no arco e flecha; Anna salvar Elsa (2013) e descobrir que o amor de irmã pode salvar vidas; Malévola (2014) salvar Aurora; e Moana (2016) reencontrar a história do seu povo e, assim, salvar sua comunidade, tornando-se chefe da ilha e mestre da navegação.

Gif de Elsa e Anna se abraçando
Gif Moana com arco e flecha

Tanto os novos filmes quanto as recentes adaptações de clássicos infantis têm tido algo marcante em comum: a modificação da figura e do arco da princesa. Acompanhando as mudanças da sociedade, tornou-se óbvio para os estúdios e roteiristas que antigos estereótipos estão ultrapassados! Nem as crianças nem seus pais querem ver princesas “adormecidas”. Esse é evidentemente um formato aposentado.

Nesse caminho, recentemente a Disney estreou o live action de Aladdin, 17 anos após a animação. Bem fiel ao filme anterior, a grande diferença foi justamente o desenvolvimento da princesa Jasmine.

Gif de Jasmine

Para além do desejo do pai de casá-la com um príncipe de outro reino (o que ela rejeita desde 1992), o novo filme aborda a vontade da personagem de assumir o trono de Agrabah. Não como esposa do próximo sultão, mas como verdadeira líder.

Jasmine com seu pai na animação de Aladdin

Essa posição nunca havia existido antes e não apenas naquele reino e no universo ficcional de Aladdin. Em nossos dicionários atuais, sultana não é equivalente a sultão, sendo definida como esposa, filha ou concubina do sultão, esse sim descrito como imperador ou “senhor absoluto e muito poderoso”. A Jasmine de 2019 questiona isso tudo e se propõe a ser a primeira sultana real, que vai efetivamente governar e decidir pelo reino, equiparada à figura do sultão.

A única música original do filme é usada justamente para fortalecer o processo de revolução da personagem. A canção Speechless foi escrita pelo compositor Alan Menken, premiado pelas músicas do Aladdin de 1992, em parceria com Benj Pasek e Justin Paul (de La la land). Uma música sobre silenciamento feminino e sobre o empoderamento para recuperação de sua voz. “Curioso” (porém nada novo sob o sol) que tenham contratado três homens para a criação de uma canção com essa temática. 

“My voice drowned out in the thunder”, canta Jasmine. Parece até ironia.

Deixando de lado esse ponto (que é cheio de significados), o filme trabalha durante quase toda a obra a questão de que “princesas não devem falar”. O que é um olhar da própria Disney para seu histórico e evolução, deixando para trás as princesas mudas, literal ou figurativamente. Afinal, vale lembrar que Ariel abriu mão de sua voz por uma chance de ficar perto do príncipe Eric e que algumas princesas estiveram dormindo durante boa parte de sua própria história, com todo o simbolismo que isso pode envolver.

Em 2019, Jasmine fala não só por si, mas por uma nova geração de princesas: “I won’t be silenced. You will not see me tremble when you try it. All I know is I won’t go speechless”. Esperamos que essas mudanças não parem por aí e que muita coisa boa esteja por vir – na representação e também na representatividade (com mulheres ocupando os cargos criativos e técnicos essenciais à produção desses filmes). Ainda longe de um “mundo ideal”, mas é um verdadeiro privilégio acompanhar essas simbólicas evoluções.

Gif Jasmine em Aladdin

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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