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Encontros e desencontros | Crítica

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Encontros e desencontros

Perdidos na tradução: interculturalidade no filme Encontros e desencontros 

Sofia Coppola dirigiu cinco longas-metragens, um especial de natal e um curta-metragem, além do envolvimento em outras produções e funções audiovisuais. O último filme, O estranho que nós amamos (The Beguiled), foi lançado em 2017. O filme, remake de 1971 é uma adaptação de A Painted Devil, um romance gótico de Thomas P. Cullian. A cineasta está em produção do filme On the rocks, sobre uma mãe que se reconecta com o seu pai, um playboy, em Nova Iorque.

Lost in Translation é o seu segundo longa. “Perdidos na tradução”. Assim seria a maneira mais próxima para nomear o filme em português, lançado no Brasil com o título de Encontros e desencontros (2004).

Em Lost in translation, os norte-americanos Bob Harris (Bill Murray), um ator de cinema, e Charlotte (Scarlett Johansson), filósofa recém-formada, encontram-se em um hotel de Tóquio, no Japão. Bob viaja a trabalho para a gravação de um comercial de uísque. Charlotte acompanha o marido, um fotógrafo que, também a trabalho, nunca tem tempo para acompanhá-la. A insônia, causada pelo fuso-horário diferente, e a não-acomodação em terra estrangeira fazem com que os dois se encontrem. A sensação de deslocamento dos personagens extrapola a questão do lugar estrangeiro. Além de perdidos na língua estranha, estão perdidos também em meio a crises pessoais e pontos de virada.

Entre-culturas

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Um corpo feminino aparece na tela e, sobreposto a este, o título do filme: “Lost in Translation”. A tela escurece. Apesar da falta de imagens, é possível imaginar o local: um aeroporto. A relação é feita por meio do som de um avião em sua decolagem/aterrissagem. Sucede-se outro som: uma fala. Uma mulher pronuncia algumas palavras em japonês e em seguida em inglês: “Bem-vindo ao novo aeroporto internacional de Tóquio”.

A interculturalidade de Encontros e desencontros é construída com elementos do mundo contemporâneo, pós-moderno ou supermoderno, termo trabalhado pelo antropólogo Marc Augé. Bob e Charlotte encontram-se em um hotel – que é no Japão mas poderia ser em qualquer outro local – oriente verticalizado. Descobrimos também o Japão tradicional, com seus monumentos e cerimônias, nas caminhadas dos personagens, principalmente Charlotte. O olhar de cada personagem leva a um cenário diferente. A percepção é incompleta. As imagens não são percebidas em sua inteireza, mas apenas em aspectos que interessam ao receptor (MARKS, 2000).

A interação com os personagens japoneses é permeada de comédia, gênero pelo qual o ator Bill Murray é tão conhecido. Nos extras do DVD do filme lançado no Brasil, no making of, Sofia Coppola fala sobre a relação intrínseca entre fazer o filme e ter Bill Murray como protagonista.

A comédia é presente, na maioria das vezes, na relação de tradução entre uma língua e outra, como o sotaque japonês ao falar um inglês que troca “Rs” e “Ls”. Entre Japão e Estados Unidos será que nós, espectadores brasileiros, somos levados à identificação com os últimos? Ou é apenas um ponto de vista proposto pelo filme? O que sabemos é que a interação destas duas culturas, mundos sempre divididos pelo Ocidente e o Oriente, é cheia de desencontros, de mal-entendidos linguísticos, de contemplações pelo exótico, mas também por semelhanças homogeneizadas em lugares comuns a qualquer parte do mundo, como hotéis, hospitais, trens, táxis, metrôs ou boates.   

Encontros e desencontros dialoga com elementos interculturais. A produção do filme é uma parceria entre Focus Feature e Tohokushinsha. Para Hamid Naficy, a produção coletiva é uma característica do modo de produção do “cinema com sotaque” (accented cinema). Naficy conceitua o cinema com sotaque exatamente pela diferenciação do cinema dominante, pretensamente universal e sem sotaque (NAFICY, 2001).

Voltamos às primeiras cenas do filme. O que nos diz a tela escura adicionada ao som do avião? Para Laura Marks, o cinema intercultural cria uma nova linguagem que aceita os gaps (intervalos). Aceita e valoriza o que não está lá, o que deve ser visto por meio não apenas dos olhos, mas da sensibilidade. “Ler/ouvir a imagem é, então, olhar/escutar com atenção não simplesmente pelo que está lá, mas pelos intervalos” (MARKS, 2003: 31).

O gap pode ser percebido também entre o que se fala e o que se entende, o que se decide traduzir ou não. No filme Encontros… lançado no Brasil, a legenda não traduz as falas em japonês. Como percebemos logo na cena da fala da mulher que dá as boas-vindas no aeroporto de Tóquio.

Bob, que é o personagem que chega ao aeroporto de Tóquio, é um viajante que desta vez foi para fora do país. Ele não é um turista, ansiosa para conhecer os “pontos turísticos” do Japão, mas está lá a trabalho. Por outro motivo, Charlotte também viaja a Tóquio, no caso, acompanhar o marido e porque não “tinha nada melhor para fazer”, como a personagem explica ao personagem de Bill Murray. Para o antropólogo Marc Augé, o espaço do viajante é o arquétipo do não-lugar (1994).

A maioria das cenas do filme é gravada no próprio hotel. A sensação é que este não pára. Os “espaços de lazer” estão sempre disponíveis aos seus hóspedes. O hotel é indiferente ao dia e à noite. Quando não conseguem dormir Charlotte ou Bob desfrutam destes espaços: o bar, a piscina, a sala de ginástica.

Há, porém, um outro Japão no filme de Sofia Coppola: o tradicional. É pelos olhos da personagem Charlotte que o espectador percebe a tal cultura milenar japonesa. Ela passeia por monumentos, por templos, por jardins, presencia um casamento, faz um pedido em uma árvore dos desejos.

Ele

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Depois da primeira noite mal dormida, Bob acorda com as cortinas de seu quarto abrindo-se sozinhas; provavelmente programadas. Ao tomar banho, o chuveiro parece não ter sido feito para sua altura. É como se ele não se adaptasse.

Por todo o filme, a presença da esposa de Bob é constante. Ela não aparece fisicamente no filme, mas ouvimos sua voz, ao telefone; vemos sua letra, com fax enviado; podemos inferir a respeito do seu gosto, por meio de cores de carpete que manda para o marido escolher.

Ao chegar no hotel, sem nem mesmo ter subido ao seu quarto, Bob Harris, quando chega à recepção do estabelecimento, recebe um envelope. A mulher lembra ao marido que ele havia esquecido do aniversário do filho, mas que tivesse uma boa viagem. Quando Bob tenta dormir no quarto, mas sente-se incomodado pelo fuso horário recebe outra mensagem da mulher, pelo fax do seu quarto.

Apesar dos desencontros afetivos expostos por Bob em relação a sua mulher, percebemos a relação entre eles envolvendo filhos, contas a pagar, decisões sobre decoração. É a partir dela que também se descobre um pouco mais sobre o personagem. “A individualidade absoluta é impensável: a hereditariedade, a herança, a filiação, a semelhança, a influência são categorias por meio das quais se pode apreender uma alteridade complementar e, mais ainda, constitutiva de toda individualidade” (AUGÉ, 1994: 23).

Ela

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No quarto de paredes brancas e lençóis bem arrumados, Charlotte vaga pelos poucos metros quadrados: senta no parapeito da janela, olha-se no espelho, deita na cama, tenta ler uma revista no sofá. Do não-lugar a personagem procura identificação, aconchego; até porque nada é totalmente impessoal.

Em uma das cenas, a recém-filósofa tenta decorar o quarto, com elementos que poderiam acrescentar ao ambiente o caráter de “lugar”. Ela coloca, na luminária do quarto, enfeites rosa, que dão um colorido diferente ao quarto. Em alguns momentos, pela manhã, antes da re-arrumação diária do hotel, o quarto de Charlotte e seu marido aparece totalmente bagunçado: roupas espalhadas pela cama, malas abertas, lençóis revirados.

Nas idas e vindas de Charlotte em seu quarto, o canto que permanece com mais frequência é o parapeito da janela. O vão na parede dá para uma imensidão de prédios. Edificações formando ondas de concreto, retângulos que se intercalam. Dos quase sempre claustrofóbicos espaços que os personagens se encontram, alguns abrem brechas para o vasto mundo afora. O bar do hotel, por exemplo, é, de um lado, todo envidraçado. Como as cenas no local são sempre à noite, o que se vê do lado de fora são luzes e prédios não-identificados.

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A relação entre vastidão e ambiente fechado é trabalhada por Naficy como tropos que representam a casa e o lugar de destino, o exílio, a diáspora. Apesar, de Encontros e desencontros não se caracterizar como um filme diaspórico, é interessante perceber a relação de ambientes fechados neste filme intercultural. A maioria dos encontros de Bob e Charlotte acontece em ambientes fechados. A relação pode ser firmada entre vastidão – lugar (como quando Charlotte passeia pelos jardins japoneses) e ambiente fechado – não-lugar (quarto de hotel, bar, boate, restaurante).

John, o marido de Charlotte, também é pouco presente fisicamente no filme, mas a relação entre os dois é mais um ponto para a não-adaptação de Charlotte. Em um telefonema para os Estados Unidos, a personagem fala que ele está usando uns produtos no cabelo e que ela não sabe com quem se casou. É como se, saindo do seu lugar de origem, ela perdesse também a referência do próprio marido.

O encontro

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A primeira conversa entre Bob e Charlotte acontece no bar, em um dos momentos que ela não conseguindo dormir decide vagar pelo hotel. Os dois falam sobre a impossibilidade de dormir. É exatamente a não-adaptação que os fazem conversar e passarem tempos juntos. É interessante que, por ser um famoso ator, outros americanos já haviam tentado entrar em contato com ele, com Charlotte é diferente. Ele é só mais um estrangeiro, como ela.

O que não acontece entre os dois desperta no espectador um desejo de entender aquela relação que, em alguns momentos, apresenta-se como afetiva e outras vezes apenas fraternal. O encontro deixa brechas para classificações fechadas. “Se nós queremos capturar um evento não devemos mostrá-lo” (MARKS, 2000: 29).

Após alguns encontros casuais no hotel, Charlotte convida Bob para sair com alguns amigos japoneses. Eles vão a uma boate. Charlie Brown, amigo de Charlotte, provoca uma briga no local e os amigos saem correndo pelas ruas de Tóquio, entram em um táxi e vão para a casa de um deles.  

Na festinha, um karaokê une os amigos ao redor da televisão. Charlotte e Bob cantam. Nas cenas que seguem o karaokê, os personagens se observam. É um dos momentos que a relação entre os dois se aproxima do desejo, pelo menos, o desejo de olhar e de ser visto.

A relação entre os protagonistas continua oscilando, deixando o espectador na dúvida do que será daquele encontro, afinal, os dias passam e chega mais perto de um deles partir. Charlotte, depois de tanto desconforto no Japão, fala para Bob: “não voltaremos mais aqui porque não seria mais tão divertido”.

Em uma outra cena, Charlotte e Bob conversam na cama. Quando o plano abre percebemos que só o pé dela encosta na perna dele. Quando eles terminam de conversar, ele coloca, lentamente, a mão no pé dela. São poucas as vezes que eles se tocam. Esta é um destes momentos.

Na despedida, é a única vez que se beijam. Depois de sair do hotel, no mesmo carro preto que o havia trazido, Bob avista Charlotte no meio de pessoas na rua. Pede ao motorista para parar o carro e vai ao encontro dela. Falam ao ouvido, deixando o espectador apenas a imaginação para recriar a conversa. Assim, se despedem. Talvez, aos dois, não coubesse outra reação. “Só podemos falar na língua que nos rodeia, também só podemos sentir nos modos que aprendemos que é possível sentir” (MARKS, 2000: 31).

Do aeroporto para o aeroporto: o filme se fecha de maneira cíclica, com Bob fazendo seu caminho de volta a casa. No caminho, apenas a estrada, placas de indicações e prédios que ficam para trás.

Entre-culturas e em não-lugares, há também o não-relacionamento. Na verdade, o relacionamento dos protagonistas é intersticial. Sem optar por definições fechadas.


Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.

HAMID, Naficy. An Accented Cinema: Exilic and Diasporic Filmmaking. Princeton, New Jersey: Princeton Universety Press, 2001.

MARKS, Laura. The Skin of the Film : intercultural cinema, embodiment, and the senses. Durham: Duke University Press, 2000.  

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

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