Que horas ela volta?, longa-metragem de Anna Muylaert, foi destaque no cenário nacional e internacional em 2015. O filme conta a história de Val, uma empregada doméstica que deixou a filha em Pernambuco sob os cuidados de outras pessoas e se mudou para São Paulo para trabalhar na casa de uma família. Lá, ela cuida da limpeza, das refeições e do filho dos patrões, acompanha seu crescimento, seus sonhos e sua trajetória. Val é “praticamente da família”. Desde que não ultrapasse uma linha invisível.
A relação, aparentemente harmoniosa, é cheia de limites, proibições, hierarquias e distanciamentos, que, de tão naturalizados, não são questionados. Até que Jéssica, filha de Val, aparece para visitá-la e problematiza essa relação mascarada, que se pretende amigável e generosa, mas esconde padrões elitistas e segregacionistas.
O filme proporcionou um debate pertinente sobre o assunto e deu visibilidade aos direitos das empregas domésticas. Através da ficção, a obra apresentou personagens verossímeis e permitiu que o público se identificasse. Quem não conhece uma Val, um Fabinho ou uma “dona” Bárbara?
Mucamas
O coletivo feminista “Nós, Madalenas” é formado por várias “Jéssicas”. O grupo é composto por mulheres de diferentes regiões de São Paulo. Além do objetivo em comum – dar visibilidade às lutas e conquistas das mulheres por meio da arte, elas têm outra semelhança: a profissão de suas mães. Várias delas são filhas de empregadas domésticas e cresceram acompanhando essa profissão, seu estigma, seus preconceitos, sua luta por direitos. Agora, com o coletivo, lançaram um documentário sobre o assunto.
Com equipe formada exclusivamente por mulheres, Mucamas é um documentário em que as filhas entrevistam as mães e buscam sensibilizar o olhar do espectador para lidar de forma mais respeitosa com essa profissão. A partir do conceito do que é ser “mucama”, o filme reflete sobre as características da profissão de empregada doméstica hoje e suas semelhanças com a época da escravidão.
“Mucamas eram as mulheres negras trazidas para serem escravas de estimação das sinhás. Elas cuidavam do serviço doméstico da Casa Grande, da criação e amamentação dos filhos da família, cozinhavam para os seus donos, mas moravam na senzala com os outros negros. O trabalho doméstico é uma das profissões mais antigas que existem no Brasil, presente no país desde a sua colonização”.
Após a comparação, as entrevistadas falam sobre suas vidas antes de ir para São Paulo, os estudos, seus sonhos, as diferentes casas em que trabalharam e a relação com os patrões. Olhando para as filhas, elas contam os problemas enfrentados ao longo da vida e refletem sobre o distanciamento e a separação entre “eles” e “nós”, às vezes materializada no uso do elevador social e o de serviço, às vezes na definição do alimento de cada um.
Cada uma delas responde à pergunta “O que é ser mulher?” e demonstra força, coragem e orgulho pelas jovens mulheres que estão atrás das câmeras, traçando seus próprios caminhos.
Doméstica
Doméstica, documentário de Gabriel Mascaro, apresenta um ponto de vista diferente. Quem filma são os “Fabinhos” da casa. Sete jovens de classes sociais diversas acompanham o dia a dia das empregadas domésticas (e surpreendentemente de um empregado) que trabalham em seus lares e buscam mostrar ao espectador como é o cotidiano deles.
A maioria segue uma história parecida com a da Val de Que horas ela volta?. Trabalham há muitos anos com as mesmas famílias, viram os filhos dos patrões crescerem e acompanharam praticamente toda a sua vida. Ao mesmo tempo em que lembram que carregaram os bebês no colo, levaram para a escola e fizeram seus bolos de aniversário, falam sobre seus próprios filhos e as dificuldades pelas quais eles passam.
Enquanto contam aos seus jovens patrões suas histórias de vida, seus amores e desamores, seu histórico profissional, a relação com os filhos e os companheiros, continuam limpando o banheiro, fazendo o almoço e lavando as roupas de seus entrevistadores.
Algo constante em todos esses filmes é a força das histórias contadas e a sacudida que o espectador recebe pela compreensão do seu próprio papel, e muitas vezes de sua conivência, dentro dessas opressões disfarçadas. É interessante perceber como ocorrem as relações entre os diversos personagens sociais e como o retrato se altera a partir de quem o conta.
A grande vantagem das obras é dar voz às profissionais e permitir o início de uma reflexão mais aprofundada da questão, em que cada espectador perceba sua função nesse sistema. Dessa forma, é possível abandonar interpretações superficiais e confortáveis da situação e assumir a posição de questionamento, como a Jéssica, quebrando os padrões impostos e problematizando relações falsamente democráticas.