Abbott Elementary retrata o dia a dia de uma escola pública da Filadélfia, nos Estados Unidos. No início da série, o colégio recebe uma equipe de gravação que começa a registrar em tempo integral a rotina dos profissionais. É a partir desse ponto de vista que o espectador acompanha os personagens, especialmente a protagonista Janine Teagues (interpretada por Quinta Brunson, que também é a criadora da série).
A obra já recebeu quatro Emmys, três Globos de Ouro e está disponível na plataforma Disney+, no catálogo herdado da Star.
Quando a série começa, Janine está em seu 2º ano no colégio Abbott. Após entrar com um grupo de 20 novos professores, apenas ela e Jacob permaneceram na instituição e passaram a compor o quadro funcional junto com os professores antigos. Posteriormente, o grupo aumenta com a chegada de Gregory, um jovem professor que acredita que sua passagem pela docência será temporária, como um rápido degrau no projeto para se tornar diretor.
Os demais novatos abandonaram o cargo no decorrer do ano e fica evidente que muitos casos estão relacionados ao esgotamento e ao adoecimento dos profissionais. No primeiro episódio vemos uma professora tendo uma espécie de surto antes de também ir embora, assustada com os alunos e com a experiência no emprego.
Dentre os professores mais experientes estão Melissa e Barbara, que fazem parte da equipe da Abbott há muitos anos. Elas estão “calejadas”, acostumadas com a falta de verba pública, com a alta rotatividade dos novos professores, o descaso do Distrito, a falta de material e as condições físicas desfavoráveis que fazem com que o prédio esteja sempre com algum problema, como banheiros alagados e luzes queimadas.
Elas encaram os colegas novatos com preguiça e deboche, especialmente Janine, com seu otimismo excessivo e a eterna esperança de conseguir mudar as coisas. Acreditam que a personagem é ingênua e que seu alto nível de energia é decorrente da inexperiência. Todos esperam que ela se acostume com o jeito que as coisas são na educação pública e que, assim como os outros, siga desmotivada, restringindo-se apenas ao que é possível fazer com o pouco que a escola recebe do governo.
Mas o tempo passa e Janine mostra que a energia e a criatividade que direciona para suas atividades têm fonte inesgotável. Ela faz de tudo para compensar a falta de recursos e de atenção que a escola recebe do Distrito. Não aceita que condições desfavoráveis possam afetar a educação de seus alunos e basicamente não aceita “não” como resposta, apesar de ouvi-la diariamente.
Janine é uma ótima professora e incrivelmente dedicada. Sua forma de lidar com os problemas e de encontrar soluções parece inspiradora. E de fato muitas questões são resolvidas por sua determinação e engenhosidade, o que motiva parcialmente seus colegas mais incrédulos.
Apesar de ser interessante ver uma professora transpondo obstáculos motivada pelo amor pela educação, é importante notar que a missão que ela abraça cobra seu preço. Janine, assim como muitos professores, está sempre sobrecarregada. Além do trabalho relacionado à docência em si, que já demanda muito tempo e dedicação, ela ainda precisa se desdobrar em mil para suprir a ausência do poder público.
Janine arregaça as mangas e desentope os vasos sanitários que precisam de conserto há meses. Ela se arrisca mexendo nos fusíveis para tentar consertar a iluminação da escola, que é insuficiente e assusta os alunos pequenos. Assim como ela, muitos professores fazem vaquinhas com seu próprio dinheiro para comprar itens que deveriam ser fornecidos pelo governo, mas que estão sempre em falta.
Amor como justificativa para exaustão
A rotina na Abbott, assim como ocorre em muitas escolas públicas, é de escassez e descaso. Para que os alunos não sejam prejudicados, alguns professores fazem muito além do que está previsto em suas obrigações contratuais. Tiram do próprio bolso, comprometem seu tempo de folga e o tempo que poderiam estar com suas famílias para solucionar questões que estão além do seu trabalho. Problemas que deveriam ser abarcados por outras instâncias.
Apesar de muitas vezes isso resolver problemas pontuais e ajudar os estudantes, não resolve a situação estrutural de desvalorização e negligência do poder público. Apagar esses pequenos incêndios diários não impede que eles retornem no dia seguinte. E nesse ritmo, os professores e sua saúde mental pagam o preço.
Janine está sempre tentando resolver problemas e, na correria, não consegue cuidar de si. Em determinado episódio, são tantas coisas para fazer que ela adia as refeições. Sem tempo para comer, acaba desmaiando na escola.
Posteriormente, conversando com Melissa, uma das professoras mais experientes, Janine aprende que precisa se cuidar para conseguir cuidar dos demais. Ela entende que os colegas também se importam, mas aprenderam com o tempo que não conseguem controlar muitas das situações desfavoráveis enfrentadas pela escola e que precisam estabelecer limites saudáveis para o seu envolvimento, garantindo seu próprio bem-estar físico e mental.
Mesmo os professores mais antigos da Abbott muitas vezes são engolidos por esse sistema adoecedor. Bárbara Howard, considerada a professora mais experiente e inspiração para toda a comunidade, tem dificuldade para admitir quando não está bem. Passando por diversos problemas e evidentemente chateada e cansada, ela não aceita que precisa descansar. A personagem acredita que não pode se ausentar e que deve continuar independente de qualquer coisa. Isso acaba causando um acidente perigoso na escola.
Um professor que mata mil leões por dia por amor à educação é uma cena bonita apenas no papel. Professores heróis muitas vezes são profissionais exaustos e com a saúde mental em frangalhos. E isso não deveria ser louvável nem aplaudido. Ainda assim, quantos filmes inspiradores existem sobre professores que transformam a vida de seus alunos e da comunidade mesmo que se sacrifiquem e se esgotem ao longo do processo?
O amor à educação e aos estudantes, muitas vezes, é usado como argumento para exigir que os professores trabalhem cada vez mais, mesmo que recebam cada vez menos. Usa-se esse argumento para demandar que eles continuem desempenhando suas funções com um sorriso no rosto mesmo quando enfrentam péssimas condições de trabalho. Quem nunca escutou que os professores ensinam por amor? Que a docência é uma missão de vida, um chamado?
A docência é um trabalho e, assim como todos os outros, precisa de justa remuneração, valorização e condições adequadas. É maravilhoso que haja amor envolvido, mas infelizmente ele não é suficiente, não paga contas nem recupera saúde perdida.
Janine e os outros professores do colégio Abbott vão entendendo isso aos poucos. Mas, como boa Poliana que é, Janine nunca consegue abandonar seu lado otimista (mesmo quando tenta ativamente desistir das coisas).
Janine e a determinação exacerbada
“Síndrome de Poliana” é um retrato psicológico descrito na década de 70 por Margaret Matlin e David Stang para descrever alguém que interpreta a maioria das situações de forma positiva, mesmo quando se refere a acontecimentos negativos. O nome foi inspirado na protagonista do romance Poliana, da autora Eleanor H. Porter. Nele, uma menina fica órfã e vai morar com uma tia desconhecida e amargurada. Na nova cidade, ela ensina a todos o “jogo do contente”, em que sempre procura o lado bom de tudo que acontece.
Na “Síndrome de Poliana”, o cérebro tende a registrar mais as lembranças positivas do que as negativas. A pessoa muitas vezes interpreta as coisas de forma diferente do que de fato aconteceram. Isso pode fazer com que ela demore a identificar situações perigosas e desagradáveis, tendo dificuldade para lidar com traumas e eventos tristes.
O nome da personagem ficou tão conhecido na língua inglesa que aparece em alguns dicionários como um termo para designar a pessoa que sempre acredita que coisas boas vão acontecer, mesmo quando isso é extremamente improvável.
Janine, de Abbott Elementary, é uma clássica Poliana. Não importa o quanto digam que seus projetos não prosperarão e que o governo não se importará com seus chamados e denúncias, dia após dia ela se esforça. Com criatividade e energia, alguns de seus planos são bem sucedidos, outros nem tanto. E ela precisa aos poucos encontrar equilíbrio entre a sua vontade de fazer tudo prosperar e a percepção de que pode adoecer se não conseguir aceitar alguns fracassos.
Junto com seu otimismo, vem algumas armadilhas: a vontade de agradar e a incapacidade de se frustrar. Janine quer que todos gostem dela, quer se enturmar, receber validação e apoio em seus projetos e fica desconfortável em situações que não dão certo. Ao mesmo tempo em que isso lhe confere uma garra admirável para tentar repetidamente, faz com que os colegas a considerem irritante e a deixa vulnerável a abusos.
Seu namorado percebe essas características e se beneficia delas. Deixa a maioria das contas nas costas de Janine, evita se responsabilizar por tarefas, a induz a abrir mão de coisas em prol dele. Querendo evitar desconforto, Janine percebe tais situações, mas não é assertiva e firme para exigir mudanças. Ela acredita que conseguirá, com jeitinho e aos poucos, que o namorado se transforme e a trate com respeito e consideração. A personagem insiste por um tempo longo demais em um relacionamento que não lhe faz bem. Quase como um de seus projetos na escola, que ela insiste bravamente em tentar solucionar, mesmo quando não tem jeito.
No trabalho, seus colegas se irritam com sua “necessidade” de tentar resolver tudo e com sua persistência fora de medida. Determinação é um traço positivo, mas quando se torna uma incapacidade de abrir mão, pode ser um dificultador.
As pessoas tendem a encarar a desistência como fraqueza, mas às vezes desistir significa apenas aceitar que algo não deu certo. E está tudo bem em fracassar de vez em quando. Janine precisa compreender que o sucesso de projetos e ideias não pode estar intrinsecamente vinculado à imagem de si mesma e ao seu senso de valor próprio.
Colocar sua energia e seu tempo em algo e perceber que não será bem-sucedido gera frustração e tristeza. Tais sentimentos devem ser abraçados e experienciados (quem aí viu Divertidamente?). Afinal, ninguém nunca terá êxito o tempo todo e é importante saber lidar com a frustração (ainda mais se depender de verba pública, como Janine).
Isso pode inclusive ser trabalhado desde a infância, em atividades em que a criança tente, persevere, se esforce e precise lidar com resultados que não a agradam. É importante aprender que não temos controle sobre todos os resultados e que, mesmo com esforço e determinação, às vezes não temos êxito. Ao contrário do que muitos podem pensar, aprender a se frustrar não faz com que a pessoa deixe de tentar. Isso a prepara para tentar novamente em outras situações, pois será capaz de lidar com qualquer um dos resultados de forma saudável.
Janine usa criatividade para adaptar os planos que não dão certo, encarando-os por outros ângulos e às vezes encontrando soluções inusitadas. Isso é incrível e muito bem-vindo na educação. Mas aprende também que precisa desacelerar e aceitar quando algo não dá certo, aprende a não encarar o fracasso de projetos como medidas de si nem permitir que as tentativas afetem sua saúde.
A personagem entende que para cuidar dos alunos é necessário ter dedicação e que suprir as lacunas com criatividade e boa vontade fazem parte. É necessário, no entanto, estar bem também. Saber identificar quando algo está sob seu controle e quando não está, saber pedir ajuda e aceitar que é possível parar de vez em quando, especialmente, para garantir que em algum momento se consiga voltar.
Enquanto sociedade, precisamos valorizar os profissionais da educação e respeitar toda a sua dedicação e esforço, mas também cobrar do governo (e da própria comunidade) que eles tenham condições favoráveis para trabalhar e para continuar se dedicando dentro de limites adequados, sem se esgotar pelo caminho.
Não precisamos de heróis, precisamos de professores valorizados, saudáveis e que queiram e consigam continuar essa jornada.