Da mesma forma que a Netflix dá, a Netflix tira. E com essa facilidade, cancela nossas séries favoritas sem peso na consciência.
One day at a time é uma série original da plataforma e foi criada por Gloria Calderon Kellett e Mike Royce como uma releitura da série de mesmo nome de 1975, criada por Whitney Blake e Allan Manings.
O seriado mostra o dia a dia da família Alvarez, formada por Penélope, seus dois filhos adolescentes, Elena e Alex, e sua mãe Lydia (além de alguns agregados mais próximos que muitos parentes por aí).
Rita Moreno, que interpreta a matriarca Lydia, descreve a série como sendo sobre uma “família sem marido”: a melhor descrição que poderia ser feita. Para muito além dos amores românticos, a série é sobre amor, em sentido amplo. Amor familiar, que supera diferenças para apoiar, estimular e respeitar.
Lydia, carinhosamente chamada de abuelita, é uma imigrante cubana que veio para os Estados Unidos há muitos anos e, apesar do tempo no país, se recusa a abandonar suas referências e seu sotaque. Ela adora confirmar estereótipos sobre a boa cozinha, a boa dança e a sensualidade das mulheres cubanas. Por ser muito religiosa e apegada aos costumes de outros tempos e outra cultura, todos esperam que ela não compreenda certas coisas. Lydia sempre os surpreende com uma mente aberta e disposição para aprender novas maneiras de se relacionar com a filha e com os netos, mantendo-os próximos e tentando compreendê-los, mesmo quando ninguém imaginaria.
Enquanto o programa de 1975 acompanhava uma mãe americana que criava sozinha suas duas filhas, a obra atual retrata o cotidiano de uma família de origem cubana que reside nos Estados Unidos. As três gerações vivem juntas lidando com seus conflitos e bagunças. Penélope é mãe solo e enfrenta dificuldades em administrar o trabalho, os estudos, o cuidado com os filhos, a casa e sua vida pessoal. Ela encontra na figura da mãe, apesar das diferenças, a companheira de vida.
Talvez pela proximidade, a relação com a filha é mais difícil do que com os netos, com cobranças e comparações que constantemente ferem Penélope. Quando finalmente as conversas tornam-se honestas e abertas, as DRs são emocionantes. E apesar de cheias de afeto, pelo que podem provocar no outro, trazem um lembrete sobre o respeito às diferenças e o cuidado necessário ao se lidar com os sentimentos alheios.
Apesar de ser, na maior parte do tempo, um seriado de comédia, com boas cenas de humor e críticas sociais amparadas em ironia, o programa conta com certas doses de drama. Especialmente no que diz respeito ao relacionamento de Elena e seu pai e às lembranças de Lydia sobre a ida de Cuba para os EUA, a separação da família, a repressão, as dificuldades enfrentadas ao chegar e a caminhada de adaptação e busca por segurança e estabilidade.
Com esse contexto e de forma muito atual, a série apresenta reflexões sobre o sistema de imigração dos EUA e questões como estereótipos, identidade e cotas raciais. Reflete ainda sobre feminismo, masculinidade tóxica, doenças mentais, homossexualidade, drogas, alcoolismo, dentre diversos outros temas. Se passando quase que totalmente em um apartamento e seus arredores e sem apresentar grandes custos (reveja esse cancelamento, Netflix), a série traz uma ampla gama de temas importantes, tratados de forma leve e humorada.
Uma de suas grandes vantagens é dar protagonismo para uma família latina dos Estados Unidos, refletindo sobre as complexidades de um grupo que tanto cresce no país. Três gerações que vivem juntas, mas que são tão diferentes. Desde uma avó que tem dificuldade com o inglês até uma neta que nunca aprendeu o espanhol.
Rita Moreno teve uma trajetória semelhante em alguns aspectos à de sua personagem. Nasceu em Porto Rico com o nome de Rosita Dolores Alverío e se mudou para os Estados Unidos ainda criança, quando se destacou na Broadway e em Hollywood. Atuou em Cantando na chuva, O rei e eu, West Side Story, dentre muitos outros. Tornou-se a primeira mulher latina a vencer um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony, integrando a seleta lista conhecida como EGOT winner.
No início, não conseguia audições para papéis que não fossem estereotipados e atuou repetidamente como mulheres sem instrução e excessivamente sexualizadas. Rita conta que constantemente se sentia mal consigo mesma e com seu trabalho, mesmo que muitas vezes não conseguisse compreender imediatamente o motivo. Após vencer o Oscar, imaginou que isso mudaria e que o sucesso e o prestígio a ajudariam a obter ofertas de papéis diversificados e complexos. Nada mudou.
Infelizmente, anos depois esse problema ainda está longe de ser solucionado, mas é fato que Rita Moreno foi parte do início dessa mudança. Em 2015, durante o Prêmio Kennedy, Gina Rodriguez, atriz de família Porto Riquenha que interpreta a protagonista no seriado Jane, the virgin, prestou um tributo a Rita Moreno e apontou sua importância como modelo e exemplo de sucesso para tantas meninas latinas que não se sentem representadas pelo audiovisual americano e que sonham em se ver nas telas. Segundo ela, Rita pavimentou o caminho para tantas artistas latinas que hoje tentam desenvolver suas carreiras nos Estados Unidos, exigindo papéis complexos, respeitosos, que lhes permitam exercitar seus potenciais.
Rita Moreno foi, assim, a origem de Penélope e Elena, permitindo que sejam hoje exemplos de personagens de descendência latina bem construídas.
Penélope é definitivamente uma mulher forte, que se obriga a dar conta de tudo e a ser o pilar de todos. Combatente aposentada das forças armadas, enfermeira, estudante, mãe de adolescentes, que economiza cada centavo para dar conta das despesas da casa. Sobrecarregada, ela encara suas próprias fragilidades, do corpo e da mente, e precisa aprender que é preciso cuidar de si também. Seu tão esperado “final feliz” é uma das mensagens mais reconfortantes do seriado.
Já Elena, desde o começo, se questiona por inteiro. Desde a sua sexualidade até a identidade como latina. Confusa, tenta compreender seu papel, sua responsabilidade, seus privilégios e seu local de fala como mulher branca, que nunca pisou em Cuba, mas que traz no sangue e na criação uma forte latinidade. Uma posição complexa na qual muitas famílias se encontram hoje em dia nos Estados Unidos, com suas primeiras e segundas gerações já nascidas em solo estadunidense. Elena é uma personagem feminista, questionadora, com forte desejo de justiça social, que rejeita padrões machistas de tratamento, nomenclatura e vestimenta.
No início de sua carreira, Rita Moreno não teve a chance de viver personagens como Penélope e Elena. Agora as encara com Lydia, como mãe e avó. Com o orgulho de uma verdadeira matriarca.
Uma resposta em “Abuelita, a matriarca | One day at a time | #MulheresEmSérie”
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