“Avatar: o caminho da água” estreou 13 anos depois do lançamento do primeiro filme da franquia. O longa-metragem de 2009 é até hoje recordista de bilheteria e foi muito comentado por usar técnicas de 3D inovadoras para a época. A obra original, que mistura live action com captura de movimento, recebeu 3 Oscars (Efeitos Visuais, Fotografia e Direção de Arte).
No primeiro filme da sequência, o espectador conheceu o planeta Pandora, para onde um grupo de humanos foi enviado em uma missão especial de reconhecimento e ocupação. O planeta é habitado por uma espécie chamada Na’vi, que é formada por criaturas de pele azul, bem maiores do que os humanos e que possuem uma relação especial com a natureza.
O protagonista Jake Sully é um fuzileiro naval que recebe um corpo Avatar para se passar por um Na’vi e se infiltrar no grupo, descobrindo seus pontos fracos. No entanto, durante o processo, ele tem a oportunidade de aprender com aquela comunidade, passa a admirá-los e se esforça para protegê-los dos humanos. Ele se apaixona por uma Na’vi chamada Neytiri e consegue ocupar permanentemente um corpo Avatar, abandonando seu corpo humano.
Muitas expectativas circundavam o segundo filme da franquia, que estreou mais de uma década depois com a pressão de dar continuidade ao sucesso do seu predecessor. “Avatar: o caminho da água” foi lançado em dezembro de 2022 e traz de volta a maioria dos antigos personagens, além de apresentar novos Na’vi ao focar o filme em um universo diferente do filme anterior. Enquanto em Avatar 1 os espectadores conheceram um povo essencialmente da floresta, Avatar 2 foca em um clã marítimo, com muitas cenas subaquáticas.
O filme está concorrendo em quatro categorias no Oscar 2023: Som, Efeitos Visuais, Direção de Arte e Melhor Filme.
Sinopse
De acordo com a percepção do Arte Aberta evitando spoilers
Após os acontecimentos do primeiro filme da franquia, Jake e Neytiri estão vivendo tempos pacíficos entre os Na’vi. Eles criam seus quatro filhos e acreditam que os tempos de guerra ficaram para trás. No entanto, quando um antigo inimigo retorna, eles se veem obrigados a abandonar sua casa e seu povo e pedir abrigo em um clã marítimo, com costumes e características muito diferentes dos seus.
Ótica de gênero, raça e LGBTQIA+/PcD
Não existem personagens PcD nem LGBTQIA+ nesse filme. Tendo em vista que a maioria dos personagens não são humanos e sim Na’vi, provenientes de outro planeta, não há que se falar sobre raça nos moldes em que estamos acostumados.
Apesar disso, pode ser apontada uma espécie de paralelo quando o filme aborda a questão da família protagonista ser miscigenada. O pai é essencialmente humano e a mãe é Na’vi. Seus filhos têm marcas que deixam evidente para os demais essa miscigenação. Por causa disso, eles são tratados com desconfiança e preconceito pelos Metkayina, o clã da água.
Fora esse apontamento geral, não é possível falar sobre questões raciais quando se trata dos Na’vi, pois usamos critérios essencialmente humanos e baseados no IBGE nesta análise. O núcleo humano do filme é composto basicamente por atores brancos (com exceção do cientista Max, que é indiano e tem um papel mínimo na trama) e a temática racial não é debatida.
Já a questão de gênero tem sido alvo de debates em relação ao filme. Enquanto algumas pessoas consideram as personagens femininas empoderadas, citando as cenas de luta, outras questionam a associação de poder exclusivamente ao uso de força física e habilidades de batalha.
Por exemplo, Neytiri é uma guerreira hábil e sua participação nas batalhas é essencial, mas seu desenvolvimento na narrativa é extremamente enfraquecido. Ela não tem o poder de tomar decisões cruciais para sua vida e para a criação de seus filhos, acatando tudo o que o marido decide, mesmo quando discorda.
Eles vivem em uma estrutura extremamente patriarcal e é Jake quem comanda tudo: ele define que a família deve abandonar seu lar e seu povo e buscar refúgio em outro local; ele define se vão atacar o inimigo ou se vão se esconder; ele define o que os filhos podem ou não fazer. Neytiri tem opiniões sobre todos esses assuntos e sempre as comunica ao marido, mas no fim das contas é a decisão dele que vale.
Sua figura está completamente vinculada aos filhos e ao marido. Apesar da maternidade ter o potencial de ser uma camada poderosa de desenvolvimento e uma possibilidade para tornar uma personagem complexa, no caso de Avatar 2 esse foi basicamente o único traço desenvolvido para Neytiri. Ela não existe para além dessa camada e ao longo da narrativa apenas obedece Jake e reage ao que acontece com os filhos.
Kiri, sua filha, tem uma história pronta para ser melhor desenvolvida em um próximo filme, mas que em Avatar 2 foi apenas pontuada. Ela está envolta em mistérios desde seu nascimento e está percebendo poderes e sentimentos que ainda não sabe controlar ou compreender. Nada disso foi aprofundado em “Avatar: o caminho da água”, dando a entender que esses elementos serão retomados na continuação da história.
Tuk e Tsireya participam da trama de forma bem coadjuvante. A primeira, que é criança, é tratada na narrativa como o elo frágil da família, sempre tendo que ser salva pelos demais, aumentando os riscos quando os irmãos a levam para suas aventuras. Inclusive, são sempre os irmãos que “têm que” proteger Tuk e Kiri, seja de ofensas, seja de perigos físicos. As duas estão constantemente na posição de serem protegidas pelos irmãos meninos (com exceção de uma única cena em que Kiri defende o grupo manifestando um poder até então desconhecido).
Lo’ak, irmão delas, chega a trocar socos com os meninos Metkayina, que implicam com Kiri. Jake repreende o filho, mas fica evidente que gostou da atitude e do fato dele ter levado a melhor na briga. A cena acaba por validar a estratégia estereotipicamente masculina de resolução de conflitos através da violência física e ratificar a necessidade dos homens protegerem as meninas da família. Inclusive, aparentemente nenhuma delas está sendo criada para ser uma guerreira como os pais, enquanto os meninos se esforçam para isso.
Já Tsireya foi introduzida na narrativa de forma evidente como par romântico para a nova geração. Desde sua primeira aparição ela é mostrada como alvo do interesse de Lo’ak. Ela é gentil, trata bem os recém-chegados e acata passivamente as regras da comunidade e as ordens do pai. Nesse filme, não há qualquer aprofundamento da personagem.
Por fim, assim como Neytiri, Ronal é uma mulher forte e uma guerreira. Ela é esposa do líder do povo da água e uma tsahik (figura equivalente a uma curandeira). Ao contrário da primeira, ela tem voz ativa nas decisões importantes que concernem ao seu povo e à sua família. Seu marido é o chefe, mas sempre a consulta e fica a impressão de que as decisões na verdade são dela. Além de decidir, ela não titubeia em discordar do marido e mantém sua posição mesmo quando ele demonstra ser contrário a algo. Infelizmente, a personagem tem um papel pequeno e pouco tempo de tela, não sendo um contraponto suficiente para a construção fraca das demais personagens femininas.
Cabe destacar que Ronal é mostrada guerreando grávida, o que difere da figura frágil, angelical e intocável que é comumente utilizada para representar mulheres gestantes em obras audiovisuais. Essa é uma imagem poderosa e é importante vê-la em um filme de ação.
Vale ressaltar, no entanto, que o diretor James Cameron tem se baseado nesse fato para afirmar em entrevistas que seu filme é um marco do empoderamento feminino superando obras como Mulher-Maravilha e Capitã Marvel. Apesar de ser uma boa inovação para a representação de mulheres grávidas, isso por si só não exclui as fragilidades no desenvolvimento das personagens femininas do filme.
Retratar mulheres fortes e guerreiras não significa que elas sejam empoderadas ou bem construídas, como bem exemplificado por Neytiri nessa obra. Sendo assim, é desproporcional elencar apenas um ponto forte do filme e desconsiderar o restante para elogiar “Avatar: o caminho da água” como um exemplo de empoderamento feminino.
Representatividade de gênero, raça e LGBTQIA+/PcD
Direção e Roteiro*
* Classificação é feita de acordo com a declaração pública e disponível das pessoas LGBTQIA+/PcD e heteroidentificação de raça e gênero
“Avatar: o caminho da água” foi dirigido por James Cameron e roteirizado por ele em conjunto com Rick Jaffa e Amanda Silver. Todos eles são brancos e não foi encontrada qualquer menção na internet sobre algum deles ser PcD e/ou LGBTQIA+.
Dessa forma, a ficha técnica principal (direção e roteiro) é composta por 0% de profissionais não brancos, 25% de mulheres, 0% de PcD e 0% de LGBTQIA+.
Elenco principal*
Créditos iniciais/finais
* Classificação é feita de acordo com a declaração pública e disponível das pessoas LGBTQIA+/PcD e heteroidentificação de raça e gênero
Os créditos finais do filme elencam 19 nomes. Desses, foram considerados 13 nomes como elenco principal: Sam Worthington (Jake Sully), Zoe Saldaña (Neytiri), Sigourney Weaver (Kiri e Dra. Grace Augustine), Britain Dalton (Lo’ak), Jamie Flatters (Neteyam), Trinity Jo-li Bliss (Tuk), Jack Champion (Aranha), Stephen Lang (Miles Quaritch), Cliff Curtis (Tonowari), Kate Winslet (Ronal), Bailey Bass (Tsireya), Filip Geljo (Aonung), Duane Evans Jr (Rotxo).
Dos 13 atores principais, cinco são mulheres (Zoe Saldaña, Sigourney Weaver, Trinity Jo-li Bliss, Kate Winslet e Bailey Bass) e seis são não brancos (Zoe Saldaña, Trinity Jo-li Bliss, Cliff Curtis, Bailey Bass, Filip Geljo e Duane Evan Jr).
Não foram identificadas informações sobre algum deles ser PcD ou LGBTQIA+. Zoe Saldaña já deu entrevistas em que comenta sobre os rumores a respeito dela ser lésbica ou bissexual, mas não há nenhuma informação pública em que ela ratifica essa informação.
Dessa forma, o elenco principal é composto por 38,46% de mulheres, por 46,15% de atores não brancos, por 0% de atores LGBTQIA+ e por 0% PcD.
Representação
Mulheres
Presença (Bechdel-Wallace)
As mulheres têm nome?
Se falam por mais de 60 segundos?
Sobre outro assunto que não seja homens?
Aprovado.
Existem cinco principais personagens femininas com nome no filme (Neytiri, Kiri, Tuk, Ronal e Tsireya). Elas conversam entre si sobre assuntos variados, normalmente em recortes de tempo curtos, mas que somados ultrapassam 60 segundos.
Isso ocorre, por exemplo, quando elas se comunicam durante momentos de fuga ou quando Tsireya está apresentando o novo local para Kiri e Tuk e elas fazem algum comentário rápido sobre o que estão conhecendo.
Tirando essas falas pontuais, existem dois principais diálogos entre mulheres no filme: o primeiro deles ocorre quando Neytiri percebe que Kiri está triste e conversa com a filha sobre como ela se sente. Sem se aprofundar, a menina comenta que gostaria de ser como todos os outros.
Posteriormente, em um sonho/devaneio, Kiri conversa com a Dra. Grace Augustine, sua mãe biológica, sobre se sentir diferente dos demais. Ela questiona o que Eywa (a Terra) quer dela e cobra respostas da mãe, que não consegue responder. A voz de Grace não sai e a visão é interrompida quando Kiri desperta convulsionando.
Arco Dramático (Mako-Mori)
Tem mulher?
Tem arco dramático próprio?
O arco dramático é apoiado essencialmente em estereótipos de gênero?
Reprovado.
Como dito anteriormente, toda a experiência de Neytiri no filme é vinculada aos filhos e ao marido. Todas as suas ações são pautadas pela necessidade de proteger ou vingar a família, não havendo o desenvolvimento de uma história e/ou motivação próprias. Ao longo de toda a trama, ela apenas reage ao que acontece com eles.
Tuk, Tsireya e Ronal também não têm arco dramático próprio. Apesar da última ser forte e ter papel central na tomada de decisões que impactam o povo da água, ela não tem história própria no filme, não tem motivação nem aprofundamento. Ela só compõe a história dos protagonistas.
Kiri é a personagem feminina mais complexa nesse filme, mas cabe destacar que seu arco dramático ainda está em desenvolvimento. Ela provavelmente terá um papel maior nos próximos filmes da franquia, pois sua história apenas começou a ser contada e ficou com mais questões em aberto do que desenvolvidas.
Kiri é filha biológica da cientista Grace Augustine e foi adotada por Jake e Neytiri. O mistério em torno de sua concepção (a mãe biológica ficou grávida de forma inexplicável enquanto é mantida em uma câmara criogênica) e a percepção de que ela se conecta com a natureza de uma forma incomum fazem com que a jovem se sinta diferente do restante da família. Ao longo do filme, ela se isola e explora as sensações de conexão com Eywa. Kiri tem sonhos/visões que ainda não consegue compreender e que geram convulsões perigosas e potencialmente fatais.
Em “Avatar: o caminho da água” foram levantados apenas mistérios em torno da personagem, criando a expectativa de que ela tenha um arco dramático em obras futuras.
Competência (Tauriel)
Houve mulher(es) com atividade profissional definida?
Ela é competente na atividade?
Grau da Competência Caso a mulher seja competente, quão competentes elas são em sua atividade profissional (1 a 5 , sendo 1 – pouco competente e 5 – muito competente)
Houve reconhecimento dessa competência?
Aprovado.
Neytiri e Ronal são guerreiras muito competentes. Além disso, Ronal atua como tsahik (curandeira). Ao ser chamada para atender Kiri, que teve uma convulsão e está inconsciente, consegue fazer com que a jovem desperte e se restabeleça.
Nota: 5
Apresentação de estereótipos
Como é a representação das personagens mulheres (escala de -1 a 3)
Sendo -1, estereótipos ofensivos;
0, não tem;
1, personagem de apoio ou secundários/principais com muitos estereótipos;
2, personagens secundários/principais com poucos estereótipos;
3, personagem principal/secundário muito bem representada, ou personagem principal sem ou com pouquíssimos estereótipos
Nota: 1
Por todo o exposto, conclui-se que as mulheres são protagonistas nesse filme, mas no geral são esvaziadas de história própria e marcadas por muitos estereótipos. Tuk e Kiri estão constantemente na posição de reféns a serem resgatadas, Tsireya ocupa marcadamente a posição de par romântico sem aprofundamento individual, e Neytiri é retratada através do estereótipo da “mãe leoa”, cuja única função no filme é proteger os filhos. A única que não se apoia tanto em estereótipos é Ronal, mas seu papel é bem menor do que os das demais, não sendo suficiente para servir de contraponto.
Raça
Arco dramático (Mako Mori)
Tem personagem não branco?
Tem arco dramático próprio?
O arco dramático é apoiado essencialmente em estereótipos de raça?
Reprovado.
Dentre os cientistas humanos que escolheram viver em Pandora após o primeiro filme há um cientista chamado Max, que é interpretado pelo ator Dileep Rao, que tem ascendência indiana.
Ele não tem arco dramático próprio e aparece na trama pontualmente, apenas transitando pelo laboratório e ajudando a tratar de Kiri quando a jovem tem uma convulsão.
Apresentação de estereótipos
Como é a representação dos personagens não-brancos (escala de -1 a 3)
Sendo -1, estereótipos ofensivos;
0, não tem;
1, personagem de apoio ou secundários/principais com muitos estereótipos;
2, personagens secundários/principais com poucos estereótipos;
3, personagem principal/secundário muito bem representada, ou personagem principal sem ou com pouquíssimos estereótipos
Nota: 1
A maioria dos personagens são Na’vi, criaturas de outro planeta. Portanto, não é possível realizar uma classificação racial considerando os critérios humanos.
O núcleo humano do filme é muito restrito, composto apenas por Aranha; pela general Ardmore; Miles Quaritch e Dra. Grace Augustine (que aparecem em gravações antigas, antes de assumirem o corpo Avatar), os cientistas que perambulam pelo laboratório e os soldados que andam pela base. Esses últimos são personagens completamente de apoio, aparecendo no filme apenas para compor o cenário.
Os personagens humanos são todos brancos, com exceção do cientista Max, que como dito anteriormente é interpretado por um ator de ascendência indiana. Ele teve uma participação um pouco maior no primeiro filme, mas em “Avatar: o caminho da água” tem um papel mínimo, meramente de apoio.
LGBTQIA+
Arco dramático (Mako Mori)
Tem personagem LGBTQIA+?
Tem arco dramático próprio?
O arco dramático é apoiado essencialmente em estereótipos de LGBTQIA+?
Reprovado.
Não há nenhum personagem LGBTQIA+ nesse filme.
Apresentação de estereótipos
Como é a representação das personagens LGBTQIA+ (escala de -1 a 3)
Sendo -1, estereótipos ofensivos;
0, não tem;
1, personagem de apoio ou secundários/principais com muitos estereótipos;
2, personagens secundários/principais com poucos estereótipos;
3, personagem principal/secundário muito bem representada, ou personagem principal sem ou com pouquíssimos estereótipos
Nota: 0
PcD
Arco dramático (Mako Mori)
Tem personagem PcD? Tem arco dramático próprio?
O arco dramático é apoiado essencialmente em estereótipos de PcD?
Reprovado.
Não há nenhum personagem PcD nesse filme.
Apresentação de estereótipos
Como é a representação das personagens PcD (escala de -1 a 3)
Sendo -1, estereótipos ofensivos;
0, não tem;
1, personagem de apoio ou secundários/principais com muitos estereótipos;
2, personagens secundários/principais com poucos estereótipos;
3, personagem principal/secundário muito bem representada, ou personagem principal sem ou com pouquíssimos estereótipos
Nota: 0
O primeiro filme de Avatar apresentava um protagonista PcD. Jake alternava entre o seu corpo humano (em que era paraplégico) e seu corpo de Avatar (sem deficiência).
No entanto, no segundo filme da sequência (que é o foco desta análise), o personagem usa integralmente o seu corpo de Avatar. Ou seja, ele não é PcD em “Avatar: o caminho da água”. Além disso, não existem outros personagens com deficiência no filme.
Mais do que não ter nenhum personagem PcD, é significativo que o filme tinha efetivamente um protagonista com deficiência (em um filme de ação e fantasia, o que torna tudo mais raro) e optou por excluir sua deficiência como parte da resolução do conflito e do “final feliz” do personagem.
A mensagem negativa que a narrativa transmite com isso é que a deficiência é um obstáculo a ser superado ou revertido para que o personagem possa viver uma vida plenamente satisfatória.