Crazy ex-girlfriend é um seriado sarcástico, cru e afiado, mas pode enganar à primeira vista. A obra parte da premissa de uma jovem advogada, Rebecca Bunch, que está insatisfeita com sua vida em Nova York, onde é uma profissional bem sucedida, mas sem amigos ou vida pessoal. Ao encontrar por acaso um ex-namorado da adolescência que fala com carinho e animação sobre sua cidade natal, ela resolve jogar tudo para o alto e segui-lo para a pequena West Covina, na Califórnia.
O que inicialmente pode parecer mais uma história absurda de protagonista que muda toda a sua vida por um homem, na verdade é uma crítica a esse tipo de narrativa e personagem. Desde o início fica claro que o objetivo da mudança de cidade e o foco de Rebecca no personagem masculino são preocupantes e negativos. A própria música de abertura faz piada sobre isso.
O seriado é claro em seu sarcasmo e em sua função de crítica, mas algumas características da protagonista demoram a ser engolidas. Rebecca Bunch é apresentada como uma mulher muito inteligente, com discurso feminista, profissional competente, segura, mas completamente irresponsável em suas ações, sem controle das emoções e com um narcisismo e egoísmo extremos. Por essas características, ela tende a flutuar no gosto do espectador, que, às vezes, torce por ela, mas, na maior parte do tempo, exaspera-se com suas escolhas e ações. A própria Rebecca questiona, em alguns momentos, se é a heroína ou a vilã de sua própria história.
Além de atitudes problemáticas (e ilegais) para conseguir conquistar os homens por quem se apaixona, em um movimento crescente de obsessão e perseguição, ela tem inicialmente péssimas relações com as mulheres que a cercam, usando-as repetidamente em seus planos de conquista sem se preocupar com os seus sentimentos.
Isso ocorre com a vizinha Heather, com a atual namorada de seu ex, Valencia, e ainda em maior medida com a sua melhor amiga e colega de trabalho, Paula. A relação entre essas duas últimas é, na maior parte da obra, o principal ponto de incômodo com Rebecca. Uma relação unilateral, desequilibrada e descuidada, que intensifica a frustração e insatisfação com a protagonista.
Apesar disso, o seriado é construído de forma a ir resolvendo cada uma dessas pendências, sem deixar Rebecca impune e promovendo reflexões e transformações na personagem. Para isso, o seriado utiliza-se de sacadas inteligentes, {mini spoiler} como a constatação de que uma personagem que sempre julgamos não falar, na verdade, não tem problemas de fala. Seguindo a narrativa através do ponto de vista de Rebecca, tão centrada em si mesma e desinteressada pelas opiniões alheias, não ouvíamos nada do que uma colega de trabalho falava, até o momento em que a protagonista revê parte de seus comportamentos e dinâmicas interpessoais, finalmente descobrindo que a outra mulher tem voz.
A protagonista é utilizada como exemplo (exagerado) de situações preocupantes e tóxicas vividas por mulheres reais a fim de se sentirem realizadas em relacionamentos amorosos, como fórmula fácil para a felicidade. Rebecca tem um constante sentimento de insatisfação, que ao longo de sua vida foi diagnosticado de diversas formas e frequentemente controlado com medicação. Como muitas pessoas, ela acredita que um relacionamento amoroso é a solução mágica para balancear seus descontentamentos e para preencher um vazio que a persegue. Ela coloca nas costas de terceiros a responsabilidade de fazê-la feliz (e a culpa por não ser) e, por isso, toma atitudes extremas para conquistar seu objetivo amoroso.
E como os relacionamentos que Rebecca busca têm a pressão de serem perfeitos para corrigirem as imperfeições de outras esferas de sua vida, eles nunca são satisfatórios. Ao invés de compreender a fragilidade dessa situação, Rebecca passa muito tempo se esforçando para corrigir o que acredita que está errado e insistindo na busca por fatores externos para se sentir completa.
Apesar de os personagens masculinos obviamente não serem perfeitos e “pisarem na bola” em alguns pontos e de Rebecca errar com muita gente, Crazy ex-girlfriend não é sobre isso.
O relacionamento abusivo abordado é justamente o de Rebecca com ela mesma. Em que o peso das expectativas, o desespero para ser amada, a autossabotagem e a dependência a machucam e moldam todas as suas ações e sua forma de se relacionar. De certa forma, ela realmente é a heroína e a vilã de sua própria história.
No fim das contas, descobrimos que a história não é sobre a relação de Rebecca com os homens, e sim sobre a sua jornada de desassociação da identidade de “girlfriend”, seja ex, atual, crazy ou de qualquer outro tipo, e a necessidade de ser apenas ela mesma, sem se definir a partir de terceiros.
E se você ainda não teve vontade de assistir à série, damos mais um argumento: algumas músicas são geniais. O seriado assume em determinados momentos o formato de musical, especialmente quando algum personagem precisa tomar uma decisão ou está refletindo sobre algo. Rebecca explica que sempre imaginou sua vida como um musical e, por isso, visualiza todos ao seu redor cantando, dançando e performando (o que a maioria dos atores faz maravilhosamente bem, diga-se de passagem).
Apesar da série apresentar situações exageradas, algumas tendendo ao ridículo e à comicidade, de maneira geral, ela é extremamente real. E essa crueza aparece principalmente e paradoxalmente nas canções, que são muito variadas em relação às temáticas e aos estilos musicais. Elas falam sobre temas gerais do cotidiano, como menstruação, depilação, sexo, parto, dentre muitos outros, de forma clara e sem delicadezas, sem disfarces, apresentando os detalhes que geralmente são ocultados por puritanismo, vergonha, licença estética ou qualquer outro motivo.
Junto com as histórias dos personagens, Crazy ex-girlfriend constrói suas críticas a partir de músicas irreverentes, em uma mistura constante de confusões absurdas e situações absurdamente reais e identificáveis.