Recentemente foi disponibilizado no catálogo da Netflix o seriado She’s gotta have it (traduzido para Ela quer tudo). A obra é baseada no filme de mesmo nome que Spike Lee dirigiu ainda na universidade, em 1986. Agora, 31 anos depois, ele teve a oportunidade de recontar essa história em um novo formato, com um maior tempo de duração (10 episódios) e atualizando seu olhar.
As duas obras contam a história de Nola Darling (vivida no filme por Tracy Camilla Johns e no seriado por DeWanda Wise), uma jovem negra, moradora do Brooklyn, em Nova Iorque, que preza por sua liberdade e independência. Ela leva uma vida sexual ativa e sem culpas, buscando seu prazer e sem se preocupar com monogamia, ciúme ou cobranças masculinas. A história gira em torno de seu envolvimento com três homens bem diferentes (Jamie, Mars e Greer), mas a forma como essas relações ocorrem difere quando contada no século passado e neste.
A música tema é a mesma (composta por Bill Lee, pai do diretor), as fotos em preto e branco da abertura do filme foram trazidas para a série, os personagens são os mesmos, vários diálogos e monólogos são praticamente iguais. Então, o que foi alterado? Como o olhar do diretor Spike Lee mudou do final da década de 1980 para cá?
A principal diferença entre as duas obras é que, em 1986, Nola começou como uma mulher livre e terminou cedendo às expectativas e sentimento de posse masculino. Em 2017 não. As expectativas, o ciúme e os ultimatos ainda existem, quem mudou foi a protagonista.
Essa transformação é impactada por dois fatores: a expansão do universo de Nola Darling e sua rede de apoio. No filme de 1986, Nola afirma que é artista e diagramadora de revista, mas isso não aparece na obra, não faz parte de sua construção narrativa. Basicamente o que vemos é a sua relação com os três amantes. Apesar de ela estar no comando, de estabelecer como o relacionamento ocorrerá e se ocorrerá, o arco dramático gira em torno deles, ela só existe a partir da interação com eles. Quase não vemos Nola sozinha e não sabemos muito sobre ela.
No seriado, a arte de Nola está em todo lugar. Em suas roupas, em suas peças, em sua ambição, em sua inspiração. Ela fala sobre sua profissão, sobre o nervosismo de expor suas peças pela primeira vez, a decepção ao ler uma crítica negativa, a felicidade ao ter um trabalho vendido. É um lado dela que independe de seus parceiros e que inexistia no filme.
Outro universo que foi expandido é o da sua rede de apoio. No filme, o pai de Nola aparece rapidamente em um monólogo e conhecemos sua amiga Clorinda (interpretada por Joie Lee), com quem ela interage apenas uma vez. No seriado, Nola tem um grupo de amigas com quem sai, se diverte, troca confidências (sobre assuntos além de homens). Ela se relaciona com os pais, com os vizinhos, com a psicóloga, com seus alunos, com sua chefe, com um amigo do tempo da escola. No seriado, Nola existe! Existe sozinha e existe em suas diversas relações, tornando-se muito mais complexa e menos propensa a se deixar definir por seus três homens.
Apesar das maiores mudanças serem referentes à Nola, os personagens masculinos também passaram por transformações, tornando-se mais densos, mais humanos e, por isso, mais fáceis de simpatizar (ou, pelo menos, conseguimos encontrar motivos para não antipatizar com eles).
Mars Blackmon
Esse personagem é o mais jovem dentre os parceiros de Nola. Usa tênis de basquete, dentes de ouro e uma grande corrente no pescoço. É engraçado de uma forma exagerada e fala todas as suas frases repetidamente até que alguém o responda. Sua fama ultrapassou o filme, e, na década de 1980, o personagem participou de uma série de comerciais com Michael Jordan, seu ídolo.
Apesar de ser considerado bem-humorado e engraçado, o Mars de 1986 (interpretado pelo próprio Spike Lee) era extremamente grosseiro com Nola e, em uma de suas primeiras aparições, afirma que está com a moça apenas pelo sexo com uma mulher “louca”, “o que todos os homens adoram na cama, mas que ninguém quer como esposa”.
No filme, apesar do ciúme e da competição, Mars se aproxima de Jamie. Enquanto fala mal de Nola, propõe uma dinâmica de camaradagem, pedindo que eles se liguem e assistam a um jogo juntos. O tratamento que ele oferta a um homem que mal conhece e que é, inclusive, seu “rival”, é mais respeitoso do que o que direciona a Nola.
Em certa cena, ele puxa assunto com Jamie e Greer propondo decidir o destino da moça na moeda. Se desse “cara”, ela ficaria com um, se desse “coroa”, ficaria com o outro. Propôs também um acordo: “você fica com ela quatro dias por semana e eu fico três. Mas os finais de semana são meus”. Apesar de ser proposto como “brincadeira”, demonstra a forma como ele encara a situação, desconsiderando o poder decisório de Nola e deixando as escolhas nas mãos dos homens, mesmo quando se trata de relações que ela – teoricamente – comanda.
Quando Nola termina com ele, Mars faz “piada” sobre ter jogado da ponte uma ex-namorada que o dispensou anteriormente. Os dois riem juntos desse comentário bizarro, o que mostra o tanto que a violência contra a mulher é naturalizada e o quanto a sociedade suaviza o olhar quando se trata de um ex-namorado/marido/parceiro, principalmente quando se trata de um jovem “simpático e engraçado”.
Já no seriado, Mars (Anthony Ramos) apresenta uma história que o torna mais complexo (mesmo em sua simplicidade e leveza). Ele é filho de um americano e de uma porto-riquenha, vive com a irmã em um setor habitacional e perdeu o pai muito jovem. Trabalha como entregador, só anda de bicicleta, tem dislexia e toda noite reza por Michael Jordan. É o único que sabe sobre a campanha de arte de rua de Nola e a acompanha e apoia. Inclusive, ele tenta ajudá-la a encontrar o responsável por destruir suas peças. Mars venera Nola e se acha sortudo por estar com ela.
Greer Childs
Greer é um homem bonito, que atrai olhares pela rua e que sabe disso. Arrogante e narcisista, ele é extremamente preocupado com sua imagem e sua forma física.
Enquanto Mars só estava com Nola pelo sexo com uma mulher “freak”, o Greer da década de 1980 afirmava que só estava com Nola porque ela era bonita. E que, se engordasse, “cairia fora”.
No filme, Greer (John Canada Terrell) julga ser o responsável por quem Nola é. Por suas roupas, seu jeito de falar e se portar. Esnobe, ele não gosta do Brooklyn e de seus moradores, tentando mudar Nola para enquadrá-la em seus padrões. “Sou o escultor e ela é apenas a argila”.
O personagem julga Nola por transar com muitos homens e usa termos como “mulheres de bem” e “boa para casar”. Sugere que ela é doente por gostar tanto de sexo e que deveria consultar um médico, o que a leva até a psicóloga Dra. Jamison.
Em 2017, Greer (Cleo Anthony) também é narcisista e arrogante, corrige a pronúncia de Nola quando ela fala francês, mas é mais simpático do que seu personagem original. É filho de um americano negro e de uma francesa branca, é culto, artístico, criativo e ousado. Conversa com Nola sobre musculação e moda, mas também sobre racismo e colorismo. Gosta de estar com ela por sua beleza, que faz um ótimo par com a sua própria, mas não atribui as qualidades da moça a si mesmo. Sua idolatria por si mesmo é irritante, mas é tão exagerada que parece caricatural e acaba sendo cômica.
Jamie Overstreet no filme
Enquanto Greer e Mars (apesar de darem muitos foras e cometerem vários erros) são leves de se lidar, o terceiro parceiro de Nola é extremamente problemático, no filme e na série.
Jamie é apresentado como um homem romântico, um poeta, refinado e elegante, mas, ao observá-lo mais atentamente, o espectador pode perceber que essa caracterização do personagem esconde uma personalidade machista, possessiva e ciumenta.
Isso já pode ser verificado na forma como Nola e Jamie se conhecem no filme. A moça conta à câmera como recebe diariamente cantadas invasivas e ofensivas na rua. Fala então que conheceu um homem que era diferente dos demais: Jamie (Tommy Redmond Hicks). Na primeira vez em que se viram, ela continuou andando e ele a perseguiu pela rua durante quarteirões, até que ela se esgueirou em um beco e o confrontou sobre o que estava fazendo. Seu argumento foi que a achou bonita e não podia correr o risco de nunca mais vê-la. O que Spike Lee apresentou como um diferencial positivo e charmoso que conquistou a protagonista é, na realidade, uma cena de perseguição inaceitável.
Isso foi modificado no seriado e o primeiro encontro aconteceu em um parque, onde Jamie pergunta se pode se sentar ao lado de Nola, iniciando uma conversa sobre poesia com o aval da moça.
No filme, após persegui-la e conseguir marcar um encontro, os dois começam a sair juntos. Ele sempre querendo exclusividade e ela deixando evidente que não é isso que deseja e que se encontra com outros rapazes.
Jamie fala repetidamente que não gosta dos amigos homens de Nola e que se incomoda ainda mais com uma amiga mulher que ele desconfia que seja sua amante. É extremamente possessivo e ciumento.
Após um pesadelo em que é atacada por três mulheres (namoradas/esposas de seus parceiros), que a chamam de destruidora de lares e ateiam fogo em seu corpo para se vingar, Nola acorda assustada e recebe um ultimato de Jamie: ou ela fica somente com ele ou nunca mais o verá.
Impressionada com seu pesadelo, marcada pelo diagnóstico da psicóloga e pressionada por Jamie, ela o chama para informar que ficará só com ele e pede que façam amor, mas Jamie não acredita em suas intenções e fica agressivo. A ofende, a joga na cama e a estupra. Quando termina, vai embora dizendo que gostou de humilhá-la.
Surpreendentemente, passados alguns dias, Nola termina com Greer e Mars e decide ficar com Jamie. Os dois falam sobre o estupro (chamando-o pelo nome e nunca negando o que aconteceu) e ela afirma que vai ficar com ele. A última fala de Jamie é: “se você fizer mais uma besteira…”.
Apesar da cena final dar a entender que o tempo passou e o relacionamento acabou não dando certo, a mensagem que fica é que Nola escolheu Jamie. O filme começa e termina dando a entender que a protagonista é forte, empoderada e bem resolvida com sua sexualidade, mas a obra como um todo não sustenta essa premissa. O longa de Spike Lee não problematizou o estupro, permitiu que a personagem cedesse ao ultimato do estuprador e ficasse com ele, mesmo sendo ameaçada e responsabilizada pelo que aconteceu de errado no relacionamento.
O diretor afirmou em entrevistas que o único arrependimento de sua carreira foi justamente o estupro nesse filme e a forma como ele foi tratado. Por isso, na série, não há qualquer proximidade com isso e a mensagem é a oposta.
Logo no início do seriado, Nola é atacada quando volta para casa e consegue fugir. O episódio a atormenta e enraivece, o que motiva uma campanha de arte de rua para combater o assédio e a objetificação feminina. Essa campanha se desdobra ao longo de toda a série, reforçando sua mensagem e alcançando grande repercussão e apoio da comunidade.
A arte de Nola foi inspirada em uma campanha real (Stop telling women to smile: http://stoptellingwomentosmile.com/), iniciada em Nova Iorque por Tatyana Fazlalizadeh. A artista, moradora do Brooklyn, assim como Nola e Spike Lee, foi contratada pelo diretor como consultora de arte da série e como responsável por pintar os quadros da personagem.
Jamie Overstreet no seriado
Na série, Jamie (Lyriq Bent) não estupra Nola nem a persegue na rua (o que possivelmente não seria perdoado por sua versão de 2017), mas seu machismo e assédio ainda estão lá, mascarados.
Jamie é um homem bem sucedido que veio de um passado de dificuldades financeiras. É apresentado como um poeta, sensível, apaixonado por Nola, pai atento e gentil. Dentre os três parceiros de Nola, é o que passa a enganadora imagem de que poderia ser o “homem certo” para a personagem. No entanto, é ciumento e bastante hipócrita em suas ações.
Jamie é casado, apesar de declarar que o casamento já terminou e que é somente o sentimento de dever que o mantém em casa. Com o argumento de que não pode se divorciar para não cometer os mesmos erros de seu pai (que abandonou esposa e filho), ele mantém eternamente o casamento e suas amantes (sendo a mais recente Nola).
Apesar de apresentar a situação como angustiante e um dilema cruel que o coloca em uma encruzilhada entre o dever e a felicidade, Jamie está confortável nesse quadro. Além do sexo fora de casa, às vezes tem “recaídas” com a esposa, e é com o dinheiro dela que sustenta suas amantes.
Através de dinheiro e “mimos/presentes”, Jamie tenta se fazer necessário para Nola. Ele compra seus quadros, seu material de pintura e, por vezes, paga seu aluguel. Leva-a a restaurantes caros, promete viagens e a presenteia com vestidos elegantes, o que lhe dá a falsa impressão de posse. Apesar de Nola deixar explícito desde o início que o relacionamento não passará de sexo e que não abrirá mão disso, Jamie tem ciúmes de Nola e pede constantemente que ela pare de ver os outros homens. O personagem romântico, que sofre pela protagonista, é na realidade paternalista, hipócrita e possessivo. Mas pelo menos, dessa vez, sua pressão não gera efeito sobre Nola.
Opal
Uma quarta e última personagem que se relaciona com Nola é Opal e a dinâmica das duas é completamente diferente nas obras. No filme, Opal (Raye Dowell) é uma amiga que tenta ficar com Nola, apesar de ser rejeitada diversas vezes. Através dela, o longa apresenta a homossexualidade como uma escolha, uma preferência (termo usado no filme).
Opal acredita que pode convencer Nola a “abrir a mente” e se envolver com ela, apesar da amiga se definir como heterossexual e insistir que não deseja nada mais que amizade. A competição entre Opal e Jamie é marcada por territorialismo e ciúme.
No seriado, Opal (Ilfenesh Hadera) é uma antiga namorada de Nola, que volta a aparecer em sua vida. Seu relacionamento é tratado com naturalidade e mostrado como a dinâmica mais madura e estável da vida da protagonista. O seriado avança, assim, em questões que estavam engatinhando em 1986.
A série da Netflix é rica ao colocar no centro de sua história uma protagonista negra, bem resolvida com sua sexualidade, que lida no dia a dia com sua profissão, suas relações interpessoais e a política de seu país e de seu bairro.
O programa atualiza não só as referências do universo de Nola Darling, falando sobre Trump, Obama, a campanha #BlackLivesMatter e a gentrificação no Brooklyn, mas também seus personagens, suas atitudes, lutas e necessidades.
Atualiza principalmente o olhar de um diretor homem no processo de construção e desenvolvimento de uma protagonista feminina, mostrando a importância de manter projetos e opiniões em constante evolução e adaptação.