Talvez você já tenha ouvido falar na trilogia de livros Fronteiras do universo (His dark materials), de Philip Pullman (composta por A bússola dourada, A faca sutil e A luneta âmbar). A história da protagonista Lyra Belacqua começou a ser escrita em 1993 e se inicia em um mundo muito parecido com o nosso, mas que não é exatamente este. Em meio a universos paralelos, seres fantásticos, ursos de armadura, daemons, bruxas e anjos, a história é basicamente sobre amadurecimento e sobre o que acontece ao deixar a infância para trás.
É também sobre a luta em defesa da liberdade e do conhecimento, com uma batalha épica contra qualquer tipo de obscurantismo e controle. Os livros são repletos de críticas, reflexões e questionamentos filosóficos, contados a partir do ponto de vista de uma menina que está passando da infância para a adolescência e que assume, sem saber, um papel essencial sobre o destino dos mundos.
Lyra é uma jovem curiosa, livre e corajosa que foi deixada ainda bebê sob os cuidados do reitor da Faculdade Jordan, em Oxford. Criada por catedráticos, em um mundo cheio de regras (que a ela não importam nenhum pouco), Lyra cresceu questionadora, ansiando por aventuras e sem se preocupar com as consequências de seus atos.
Quando crianças da região começam a desaparecer, incluindo seu melhor amigo, Lyra parte em uma missão para descobrir o que está acontecendo e para salvá-las. Essa aventura acaba por se tornar algo muito maior e muito mais importante do que ela poderia ter imaginado.
Com sua coragem, determinação e a facilidade para inventar histórias (o que a livra de muitos perigos), Lyra tornou-se uma das heroínas infanto-juvenis preferidas da Literatura.
“Tendo ensinado em escolas por cerca de 12 anos, eu estava bem ciente de que havia uma Lyra em cada turma. O que eu sempre pontuo, quando sou perguntado sobre isso, é que Lyra não é especial. Ela é ordinária, até comum. Mas são as qualidades que ela compartilha com tantas meninas da vida real que a ajudam quando ela se encontra em circunstâncias extraordinárias”.
A escritora e estudiosa inglesa Katherine Rundell completa:
“Esse lugar comum é o que a faz tão vívida. A despeito do fato de que as bruxas têm uma profecia sobre ela, Lyra não tem, diferente do Harry Potter, nenhuma magia particular. Ela não tem nada que a torne única e preparada para a missão à sua frente. Ela se torna uma heroína, não nasce como uma”.
O primeiro livro da trilogia foi adaptado para o cinema em 2007 pelo diretor Chris Weitz, com o título A bússola de ouro. Dakota Blue Richards interpretou a protagonista Lyra e Nicole Kidman, Daniel Craig, Eva Green, Ian Mckellen, Sam Elliot e Kathy Bates também fizeram parte do elenco. Apesar desse super time, a obra não teve uma boa recepção.
Cabe destacar que esse filme sofreu sérias críticas e boicote por parte da Igreja Católica e expressamente do Vaticano. A trilogia de Philip Pullman apresenta uma instituição religiosa extremamente poderosa no mundo de Lyra, o Magistério, que foi construída como antagonista a ser combatida e de quem o mundo precisa ser salvo. O Magistério detém o poder sobre o conhecimento e sobre a Ciência, controlando o que a população deve saber ou não, eliminando qualquer narrativa que contrarie os ensinamentos e valores religiosos.
Seus representantes estão especialmente interessados na materialização do “pecado” e querem eliminá-lo inteiramente como forma de “salvar” a humanidade. Com essa argumentação, justificam muitas atrocidades e se consideram superiores a qualquer controle ou julgamento. Os livros vão além. Mais do que duras críticas à igreja, o autor leva o combate dos personagens para outros mundos e outros planos, envolvendo a figura dos anjos, a morte e a própria Autoridade.
É fácil compreender porque os livros geraram alvoroço entre as entidades religiosas do nosso próprio mundo. Sem querer gerar muitas controvérsias nem perder público, o filme A bússola de ouro cortou diversos trechos relativos ao Magistério e se afastou das críticas e reflexões sobre religião. Considerado covarde e acusado de comprometer a essência e o significado da obra original, o filme foi bastante criticado pelos conhecedores da trilogia.
His dark materials, a série
Em 2019, a BBC e a HBO lançaram a 1ª temporada da série His dark materials, protagonizada por Dafne Keen (intérprete da personagem Laura no filme Logan). Nessa nova leitura das obras, Amir Wilson, Ruth Wilson, James McAvoy, Lin-Manuel Miranda, Andrew Scott, Anne-Marie Duff, Simone Kirby, Helen McCrory e muitos outros dão vida aos humanos e aos seres fantásticos dos diversos universos que compõem a trama.
Diferentemente do longa-metragem, a série não se afasta das críticas religiosas e torna o Magistério um “personagem” de peso. Além do elenco incrível e do roteiro fiel, os efeitos visuais foram muito elogiados. No mundo de Lyra, todos os humanos têm uma parte de sua alma materializada fora do corpo no formato de um animal. Os daemons e os humanos têm uma ligação muito especial e sentem tudo que o outro sente. Imagine um seriado em que a grande maioria dos atores tem um ser fantástico lhe acompanhando. Dezenas e dezenas de seres criados com efeitos especiais, cada um deles com uma personalidade, um ritmo e um estilo próprio. Além deles, o programa conta com ursos gigantes, bruxas voadoras e diversos outros seres. É uma super produção em termos técnicos e artísticos.
Do total de episódios (já contando com a 3ª temporada, que ainda não estreou), 12 foram/serão dirigidos por mulheres. As diretoras são: Dawn Shadforth, Leanne Welham e Weronika Tofilska. A maioria dos episódios foi escrita por Jack Thorne, mas Francesca Gardiner, Lydia Adetunji, Namsi Khan e Sarah Quintrell também assinam alguns dos roteiros.
Meninas protagonistas
Importante também destacar que Dafne Keen dá um show como Lyra. É maravilhoso acompanhar uma série com uma menina protagonista tão complexa e bem construída. Lyra é inteligente e astuta, tem uma incrível habilidade para improvisar e para inventar histórias. É corajosa, destemida e tem uma grande ânsia por justiça e por ajudar os outros. Ao mesmo tempo, detesta ser contrariada, constantemente comete erros ao agir por impulso e tem dificuldade de seguir os planos quando não envolvem fazer o que ela quer.
Lyra é firme, assertiva e não teme se dirigir aos demais de igual para igual, esteja falando com uma autoridade, com um desconhecido ou com um enorme urso assustador. Ela costuma ter uma boa intuição de quando deve falar o que realmente quer e quando deve inventar uma personagem e uma história. Essas habilidades e a ajuda de muitos amigos fazem com que Lyra viva aventuras fantásticas e enfrente inimigos jamais imaginados, ficando com o mundo e o destino da humanidade em suas mãos.
Se alguém achava que uma menina não seria capaz de feitos tão extraordinários, tem que repensar. Lyra Belacqua (ou Lyra da Língua Mágica) surgiu para mostrar que não só é possível uma menina viver tais histórias, como também que contar essas histórias dá muito certo e traz muito sucesso. Que possamos ter cada vez mais filmes e séries protagonizados por meninas! E não qualquer obra, mas produções com grandes investimentos, com roteiros sérios, com críticas relevantes e necessárias, com aventura, ação, mistério e fantasia. Que os criadores, o público e os investidores aprendam com a Lyra que meninas podem viver todas as histórias possíveis, não só desse mundo, mas de todos os mundos imaginados.
Enquanto a 1ª temporada foi focada no livro A bússola de ouro, a 2ª (lançada em 2020) narra os acontecimentos do livro A faca sutil. Essa obra traz para o centro a figura de Will Parry, um jovem que nasceu no nosso mundo e que se vê obrigado a fugir. Ele encontra Lyra em uma encruzilhada perigosa entre os mundos e os dois decidem continuar juntos para aumentar suas chances de sobrevivência e êxito. Com o tempo, entendem que seus destinos estão vinculados e que Will também têm uma importante missão a cumprir no destino da humanidade.
A 3ª e última temporada já começou a ser filmada e é centrada nos acontecimentos do livro A luneta âmbar. Mal podemos esperar!