É inegável que cada diretor e cada roteirista têm sua própria visão sobre determinada história, contando-a do seu jeito e sob influência de suas experiências, por mais imparcial e profissional que tente ser. Por esse motivo, muito se discute sobre os impactos de ter histórias sobre mulheres contadas por homens.
O filme O escândalo (Bombshell) é centrado em um caso real que foi amplamente divulgado há alguns anos, em que dezenas de funcionárias da Fox News denunciaram o fundador do canal por assédio sexual.
Roger Ailes foi um empresário e comunicador estadunidense que atuou como consultor de mídia do partido Republicano durante muitos anos. Foi contratado em 1996 por Rupert Murdoch (criador da Fox) como CEO e fundador da Fox News, um programa de jornalismo conservador e tendencioso que tem amplo alcance, chegando a 86 países ao redor do mundo e sendo considerado um dos principais programas de jornalismo 24h dos Estados Unidos.
Em 2014, ele foi denunciado por Gretchen Carlson, antiga estrela da Fox, por assédio sexual, o que desencadeou uma extensa investigação de conduta que descobriu outras dezenas de casos de assédio ao longo dos anos. O filme, inclusive, mostra algumas das vítimas reais relatando as violências sofridas no ambiente de trabalho por parte de Roger Ailes.
O escândalo é centrado em três profissionais da Fox que se encontram em momentos diferentes de suas carreiras jornalísticas, mas que, infelizmente, compartilham histórias semelhantes.
Gretchen Carlson (Nicole Kidman) já viveu o “auge” profissional e agora foi propositalmente rebaixada para um programa de baixa audiência; Megyn Kelly é uma das principais comentaristas políticas do canal, tendo sido eleita uma das 100 mulheres mais influentes do mundo em 2014 pela revista Times e tendo alcançado extrema visibilidade por confrontar publicamente Vladimir Putin e criticar Donald Trump; e Kayla Pospisil (personagem fictícia) é uma jovem religiosa e conservadora que está no início da carreira e admira muito a vertente ideológica da Fox, desejando se destacar na emissora e se tornar apresentadora.
À medida que vamos acompanhando essas três mulheres em estágios profissionais tão diferentes, vamos conhecendo um pouco sobre o universo do jornalismo dentro da Fox e o machismo que envolve a mídia na frente e atrás das câmeras. Mulheres obrigadas a trabalhar de saia ou vestido, com mesas vazadas para mostrar suas pernas, com cintas para diminuir a barriga e afinar a cintura, com enchimentos nos sutiãs, maquiagem constante, saltos agulhas dolorosos; tudo isso para vender uma imagem irreal e torturante que o público não só compra, como exige, compactuando assim com um sistema misógino e explorador.
Gretchen questiona esse modelo a partir de pequenas ações, como ao propor um dia de jornalismo sem maquiagem para gerar um impacto positivo sobre as meninas espectadoras e combater a imagem hipersexualizada de mulheres na televisão. Com essa proposta, sua carreira, que já estava em derrocada, fica seriamente ameaçada. Afinal, questionar um sistema tão lucrativo não é bem visto pelos que estão acima (todos homens, brancos e ricos).
Ao mesmo tempo em que Gretchen faz essas pequenas tentativas de contornar o status quo no jornalismo, Megyn enfrenta um conflito com Donald Trump em meio à corrida presidencial. Ao questioná-lo sobre a forma como trata publicamente as mulheres, com diversas ofensas, comentários estereotipados e a relativização de assuntos como estupro dentro do casamento, Megyn ganha a inimizade de grande parcela da população estadunidense, o que se mostra muito perigoso para ela e sua família.
Com ataques pessoais do candidato à presidência e seus seguidores, Megyn tem sua vida virada ao avesso e se torna alvo de ataques misóginos durante meses. Logo que essa questão parece perder força, e quando tudo que ela mais quer é voltar à normalidade, se vê envolvida em um novo escândalo: a acusação de assédio sexual dentro da Fox, onde ela é uma das principais estrelas.
Sem nenhuma garantia, Megyn deve decidir se revela o que sabe, apoiando as colegas atuais e possivelmente protegendo as futuras gerações, sob risco de ameaçar sua própria carreira e de se tornar novamente alvo da mídia e dos haters (que ela descobriu, na prática, serem extremamente implacáveis e incansáveis).
Na ocasião da primeira denúncia, que relatava um assédio de anos atrás, Roger Ailes tinha cerca de 74 anos e locomovia-se com o auxílio de um andador. Surgiram então denúncias atuais, que demonstraram que mesmo doente, com dificuldade de locomoção, ele ainda exigia atos sexuais de suas funcionárias, deixando claro que se trata de um sistema de poder e controle que vai além do sexo em si. Envolve o domínio sobre o outro, com a possibilidade de demitir funcionárias ou estagnar suas carreiras a seu bel prazer, manipulando situações e relações como forma de demonstração de poder.
Roger Ailes se acostumou a um sistema que trata as mulheres como objetos descartáveis e teve suas agressões normalizadas pelo coletivo durante anos.
O filme tenta então mostrar alguns dos diversos motivos que blindam muitos homens da punição por esse tipo de crime, com destaque para a vergonha da vítima, o medo de ser taxada de fraca ou ambiciosa em extremo, o medo de ser culpabilizada e o receio das repercussões profissionais. Afinal, como muito se repete na obra: “Não se processa o próprio chefe”.
“Ninguém processa as emoções ou age da mesma forma”, afirmou Charlize Theron, que além de protagonista é produtora da obra. “E acho importante a gente quebrar o estigma sobre a aparência e o comportamento, seja da vítima, seja do perpetrador. O filme causa outra reflexão: devemos ouvir a vítima mesmo que não gostemos dela. Isso inclui não questionar casos em que mulheres procuram seus agressores e até se relacionam com eles. Como sociedade, estamos começando a compreender melhor a psicologia em torno disso”.
Apesar do filme ser centrado em um caso específico, fica óbvio que aquele não é um quadro isolado e que o machismo e a cultura do estupro estão presentes no universo da mídia como um todo (e não limitado a ele). Ao contrário de Roger, diversos outros funcionários do alto escalão da Fox ficaram impunes, e assim como eles, inúmeros outros de vários canais.
Cabe mencionar que apesar do filme ser centrado em três protagonistas mulheres e abordar a cultura do estupro dentro do ambiente de trabalho, ele não o faz pelo ponto de vista das próprias mulheres.
Afinal, o filme não foi apenas dirigido (Jay Roach) e escrito (Charles Randolph) por homens; dos nove produtores, apenas quatro são mulheres; e dos seis produtores executivos, apenas duas são mulheres (há também uma produtora associada). Além disso, tanto a direção de fotografia, quanto a edição do filme, a edição da música, a criação da trilha sonora, a direção de arte, o design de produção e os efeitos especiais foram todos realizados e chefiados por homens.
O que nos leva a compreender que, com algumas exceções (com destaque para maquiagem, decoração de set e figurino), o filme foi construído por homens. A história foi contada através de seus ângulos, seus cortes e suas opiniões. Como costumeiramente se contam as histórias de mulheres. Infelizmente.
