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É possível contar histórias trans sem fake: a minissérie Veneno

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Após uma licença maternidade, Faela Sainz estava voltando ao trabalho de jornalista e procurava uma história impactante para marcar o seu retorno. Mal sabia ela que essa história impactaria a vida de tanta gente e até mesmo a forma como a mídia se desenvolveria.

Levada pelo acaso, Faela conheceu uma prostituta trabalhando de madrugada no Parque del Oeste. Sua presença era tão marcante que a jornalista percebeu na hora que ela precisava ser vista. Assim teve início a carreira televisiva de Cristina Ortiz Rodríguez, conhecida mundialmente como La Veneno.

Cristina tornou-se um ícone da televisão e, para grande parte do público, foi o primeiro contato com uma mulher trans. Sua presença constante na mídia na década de 90 levou para dentro das salas das famílias espanholas um universo que até então estava restrito aos parques escuros e a outros pontos de prostituição.

Claro que sua trajetória na mídia não foi livre de percalços e nem funcionou como um trampolim mágico que alçou outras mulheres trans adiante sem dificuldades. Mas sua evidência midiática foi inegavelmente um marco e começou a pavimentar um caminho (mesmo que longo e tortuoso) para todas que vieram depois dela.

Veneno: a série

Estreou no final de 2020 (junho de 2021 no Brasil), a série Veneno, que conta a história de Cristina ao longo de décadas. Com um roteiro bem costurado e ferramentas narrativas interessantes, vamos e voltamos nos anos, acompanhando Cristina desde a infância, passando pela adolescência, pelo processo de transição, o início do sucesso, o auge e a “derrocada”.

Entremeada com sua história, acompanhamos a jornada de Valéria, uma jovem fã de Veneno que faz de tudo para conhecer a estrela e percorre sua própria caminhada de autodescoberta. A partir dessa relação entre duas mulheres trans que crescem em épocas diferentes, é possível compreender o impacto da visibilidade alcançada por Cristina e a importância da sua figura para a comunidade LGBTQIA+, especialmente em um período em que a internet e a produção de conteúdo funcionavam em uma escala infinitamente mais restrita.

A série, inclusive, foca bastante no papel da mídia na formação da opinião pública e na responsabilidade que esses profissionais devem ter na construção de pautas e tendências. A televisão é praticamente um personagem na série e moldou grande parte da trajetória de Cristina. Assim como teve um papel essencial para alçar Veneno ao estrelato e para torná-la um ícone, a TV também atuou ativamente em seu processo de decadência. Com a máxima de que vale tudo para alcançar audiência, a televisão sugou e expôs Veneno até onde pôde. Ao longo dos anos, explorou suas vulnerabilidades, a colocou em situações desconfortáveis e incentivou o público a se regozijar com as suas perdas.

Além de proporcionar uma análise sobre a responsabilidade e o papel da mídia, sobre fenômenos de Comunicação e sobre as mudanças que impactaram a televisão ao longo dos anos, a série chama atenção de qualquer produtor de conteúdo (e de qualquer interessado atento) pelos recursos visuais e estratégias narrativas utilizadas.

Com brincadeiras entre o que é real e imaginário, efeitos visuais e troca de narradores para marcação temporal, a série joga com a imaginação do espectador e constrói um universo fantástico para contar uma história de glória e também de sofrimento. Às vezes enxergamos as memórias de Cristina a partir da crueza que um mundo preconceituoso direciona a mulheres como ela; e às vezes vemos a história através de suas lentes sonhadoras, que aspiram ao reconhecimento e à adoração.

Veneno era uma mulher complexa, polêmica e irreverente. Nada mais justo do que contar parte da história a partir do seu olhar. Ao mesmo tempo em que o roteiro apresenta os fatos e é fiel à realidade, também permite à personagem ressignificar simbolicamente alguns eventos. Taxada como mentirosa e exagerada, Veneno apenas nos mostra partes de sua história como ela gostaria que tivessem ocorrido. Ao invés de uma mentira, uma fuga da realidade, que podem ser coisas bem diferentes.

E nesse processo de ressignificar acontecimentos, a série faz diversas homenagens e permite a personagens reais reconstruírem suas experiências com Veneno. Uma das personagens mais importantes da série é Paca, la Piraña, amiga fiel de Cristina. A personagem é interpretada por ela mesma, em um processo mimético que a permite encarar novamente sua melhor amiga e, de certa forma, lhe dá uma segunda chance de construir a história das duas. O sucesso da personagem foi tanto que a produtora espanhola Atresplayer Premium decidiu produzir a minissérie Paca la Piraña ¿dígame?, em que a artista conversa sobre temas diversos.

Assim como ela, várias personalidades da vida real participam da série. Algumas interpretando a si mesmas, como Juani Ruiz (outra amiga de Cristina), e algumas atuando em outros papéis, surgindo na trama como uma homenagem ou como uma forma de se despedir de Veneno e de uma história que marcou a todos. É o caso de Valeria Vegas, amiga e autora do livro biográfico que baseou a série; e do trio Faela Sainz, Pepe Navarro e Machús Osinaga, os principais jornalistas por trás da descoberta televisiva de Veneno.

Cabe destaque também para as atuações primorosas do elenco principal. Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres vivem Veneno em diferentes fases da vida adulta, enquanto Lola Rodríguez dá vida a Valéria.

Veneno: minissérie

Todas elas são mulheres trans, inclusive interpretando as personagens durante a fase de transição, mostrando de uma vez por todas que transfake não é justificável em nenhuma situação.

Além delas, a série tem um super elenco de mulheres trans, tanto no protagonismo quanto nas histórias de fundo, com atrizes trans interpretando jornalistas, balconistas, enfermeiras, etc. Um mundo povoado por mulheres trans em todos os locais e profissões.

Foi anunciado no final do ano passado que histórias como as de Veneno continuarão sendo contadas no audiovisual. A Atresplayer Premium manifestou interesse em adaptar o segundo livro de Valeria Vegas, Vestidas de azul. Não se trata de uma sequência de Veneno, mas de uma nova série que abordará outras histórias passadas no mesmo universo. Com uma narrativa tão rica, existem centenas de caminhos possíveis e de desenvolvimentos que adoraríamos ver nas telas.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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