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The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia) | Crítica

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NOLITE TE BASTARDES CARBORUNDORUM

O que aconteceria se, do dia para a noite, nossa Constituição fosse suspensa? Quais seriam as primeiras mudanças? Quem seria privilegiado e quem mais perderia?

A série O conto da aia, baseado no livro homônimo de Margaret Atwood (1985), apresenta uma realidade distópica na qual os EUA transformaram suas leis e implantaram um regime misógino, hierárquico e marcado pelo fanatismo religioso. A série foi lançada na plataforma Hulu, que não está disponível no Brasil, mas a série pode ser acessada em outros sites.

Na história, com as constantes alterações climáticas e intervenções agressivas no meio ambiente, a humanidade teve quedas drásticas em suas taxas de natalidade, com risco até de deixar de existir. A maioria das pessoas ficou estéril. Mesmo as mulheres férteis têm dificuldade para engravidar. Quando conseguem, as chances do bebê nascer saudável são de 1 em 5.

O Conto da Aia - Cartaz da série "The handmaid's tale", escrito "The future is a Fucking Nightmare" (O futuro é um pesadelo)
Um dos cartazes da série

Sob essa ameaça, os EUA tomaram medidas extremas. Tendo como desculpa um ataque forjado ao Congresso e a culpabilização de terrorismo, a Constituição foi suspensa “temporariamente” e um sistema fundamentalista cristão foi implantado como meio de defender o país. O próximo passo foi aprovar uma lei determinando que as mulheres não podiam ter propriedades. Todas foram proibidas de trabalhar e suas contas bancárias foram congeladas, passando todo o dinheiro para os maridos ou parentes masculinos mais próximos. As mulheres foram proibidas de ler e de se expressar, devendo obedecer aos homens em todos os quesitos.

Nesse novo regime, liderado pelo grupo “Filhos de Jacó”, os EUA passaram a se chamar Gilead e a religião se tornou o norte, devendo garantir o retorno aos valores tradicionais e a retomada de um estilo de vida “digno, moral, saudável e próximo de Deus”. O objetivo é limpar o país dos impuros. Sua principal base é o estabelecimento da fertilidade como um recurso natural a ser administrado pelo governo.

Basicamente, isso significou o fim dos direitos das mulheres, a supremacia masculina e um sistema misógino e homofóbico.

Na série, isso acontece em um mundo como o nosso e nos tempos atuais. É aterrorizante perceber a facilidade com que as pessoas aceitaram o modelo de sociedade e se adaptaram a ele, externalizando pensamentos e ódios pré-existentes. É importante também observar o papel dos demais países, que acompanharam as mudanças e escolheram não intervir. Guardadas as devidas proporções, o quanto isso pode servir como espelho da nossa própria sociedade e das tendências conservadoras e intolerantes que tentam ganhar espaço? Margaret Atwood, inclusive, já afirmou que teve o cuidado de não inserir na obra nada que já não tenha acontecido em algum momento da História.

Na versão audiovisual, homens e mulheres foram às ruas protestar, mas foram atacados por um exército truculento. Sem dinheiro, as mulheres não podiam sair legalmente do país e tentaram fugir pelas fronteiras, sendo perseguidas e separadas de suas famílias.

Foi o que aconteceu com June, que fugia com seu marido e filha. Após ser capturada, foi levada para o Centro Vermelho, o local de treinamento das aias, as únicas mulheres férteis remanescentes. Sob o risco da infertilidade, as mulheres de Gilead foram consideradas propriedades do governo, divididas em categorias e identificadas por cores: esposas (azul), marthas (verde), tias (marrom), prostitutas e aias (vermelho). Enquanto as esposas são mulheres de classe alta, casadas com comandantes do exército; as marthas são empregadas domésticas; as tias são treinadoras do Centro Vermelho; as prostitutas são escravizadas em bordéis e as aias são reprodutoras. Cada comandante recebe uma aia para que possa fecundá-la e dar continuidade à sua linhagem. As que não se enquadram em nenhum desses grupos são classificadas como “não mulheres” e enviadas para as colônias, para limpar lixo tóxico e morrer.

O Conto da Aia - Aias, de vestido vermelho, enfileiradas em uma parede branca.

As aias são treinadas no Centro Vermelho, um local marcado por punições, mutilações e medo. Com frequência as aias enlouquecem. É necessário muita força de vontade para se manter sã e não esquecer sua identidade. No treinamento, elas aprendem as regras desse novo regime e são ensinadas a ser submissas e a culpabilizar as mulheres pelas coisas ruins que lhes acontecem.

Elas aprendem que a infertilidade foi uma praga enviada por Deus para castigar a humanidade pela destruição do mundo. “Mas mesmo com as taxas de natalidade caindo, a sociedade continuou estragando tudo. Tomando anticoncepcional, pílulas do dia seguinte, fazendo abortos. Só para poderem ter suas orgias e prazeres”, explica a tia responsável pelo novo grupo de aias em que se encontram June e sua amiga Moira. “Elas eram mulheres safadas, eram prostitutas. Mas vocês são especiais. A fertilidade é um presente de Deus. Ele as deixou puras por um propósito bíblico. Vocês servirão aos líderes dos fiéis e suas esposas estéreis. Vocês irão gerar filhos por elas”.

Esse procedimento é baseado na história bíblica de Raquel, Jacó e Bila. Raquel era estéril e não conseguia engravidar e dar filhos a seu marido. Ela possuía uma serva chamada Bila, que entregou a Jacó para ser fecundada e para gerir os filhos do casal. Dessa forma, June é entregue à família do comandante Fred e passa a ter um novo nome: Offred, que significa literalmente que ela pertence a Fred.

Os estupros, chamados de cerimônias, acontecem frequentemente e sempre na presença da esposa, que segura a aia pelos pulsos e mantém sua cabeça em seu colo, mexendo-se com o movimento dos outros dois. A fecundação, no entanto, não é considerada estupro. A intenção é ter filhos através da aia, que serve como instrumento do casal. Elas não são vistas como amantes nem como vítimas, são apenas úteros.

No momento do parto, assim como na fecundação, a esposa fica junto da aia, encostada nela para experimentar as sensações que deveriam ser suas. Ela grita e respira como se também sentisse as contrações. Assim que o bebê nasce, é entregue à esposa, que escolhe seu nome, pode niná-lo e ficar com ele nos braços, enquanto a aia não tem direito algum e deve retornar à função de útero a ser fecundado.

O Conto da Aia - Mulher grávida deitada em uma cama, com uma aia acompanhando

Em um paradoxo, para essa mesma sociedade, estupro é considerado um crime gravíssimo e a única pena possível é a morte. O estuprador é posicionado em um espaço aberto e dezenas de aias ficam em volta dele. Quando um apito é tocado, elas podem fazer o que quiserem até ouvir o som novamente. Quando isso acontece, elas colocam para fora todo o ódio e agressividade que são obrigadas a esconder no restante do tempo de seus próprios estupradores e carcereiros. Algo que do lado de fora é considerado um crime, mas que dentro de casa é encarado como prática religiosa.

Nesse regime hipócrita, as relações entre as próprias mulheres são ambíguas, marcadas por camadas de privilégio que alternam as posições de opressora e oprimida. Enquanto as esposas e tias atuam para perpetuar as agressões, justificando o sistema e atuando de forma cruel e ativa em relação aos castigos das aias e, inclusive, em relação aos estupros, elas também sofrem as consequências desse modelo de sociedade.

Mulheres fortes e independentes, que perderam suas profissões, que foram proibidas de ler, de se expressar livremente. Como o sistema fundamentalista religioso considera a fecundação como o único objetivo do sexo, essas mulheres, por serem estéreis, foram privadas de tudo que se relacione à sexualidade. Seus maridos não as tocam mais, ficando o sexo restrito às aias. Apesar de ser um estupro, do qual elas mesmas fazem parte, a classe das esposas se ressente com as aias por perder uma parte de suas vidas tão imprescindível. Em níveis diferentes e com variados graus de participação, todas as mulheres são penalizadas nesse novo sistema.

O foco na fertilidade tem uma outra consequência extrema. Como o objetivo é unicamente procriar, a homossexualidade é vista como uma aberração e deve ser escondida, sob pena de morte ou de severas punições. A palavra “gay” não pode ser pronunciada, sendo substituída por “traidor do gênero”. Fiscais do regime investigam as aias para avaliar se descumprem os costumes e as leis.

Esse sistema faz com que as aias não saibam em quem podem confiar e se isolem, não compartilhando seus sentimentos com ninguém. O objetivo é que, devido ao medo, elas não se unam e não se fortaleçam.

Imagem centralizada, por cima, de uma aia

A despeito disso, algumas mulheres começam a se reunir em um movimento de resistência, uma rede de apoio e busca por informações para se libertar, uma espécie de exército vermelho. Elas se permitem confiar umas nas outras e contar novamente com o conceito de “nós”, que havia sido tirado delas.

Enquanto um dos lemas do regime é “abençoados são os mansos”, June recobra suas forças com a ajuda de palavras diferentes, vindas de uma desconhecida sem nome e sem rosto, gravadas na parede de seu quarto: “Nolite te bastardes carborundorum”, “não permita que os bastardos reduzam você a cinzas”. A frase ficou famosa e transpôs o livro e a série para se tornar símbolo de esperança e enfrentamento. Entalhada em paredes, gravada em camisetas e marcada em tatuagens, a mensagem demonstra resistência, seja na obra de Margaret Atwood, no seriado do Hulu, ou nas violências e opressões da vida real.

O conto da Aia já havia sido adaptado como filme (1990) e como ópera (2000) e a série de 2017 teve excelente audiência, já tendo uma 2ª temporada confirmada. Dos dez episódios da 1ª temporada, oito foram dirigidos por mulheres (Reed Morano, Floria Sigismondi, Kate Dennis e Kari Skogland).

Além da forte presença atrás das câmeras, as mulheres se destacaram também na frente delas. As atuações femininas estão incríveis, com destaque para a protagonista Elisabeth Moss (Mad Men) e para Samira Wiley (Orange is the New Black) e Yvonne Strahovski (Chuck, Dexter e 24 horas). Cabe ressaltar a surpreendente interpretação de Alexis Bledel (Gilmore Girls), que cresceu da adorável Rory Gilmore para dar vida a Ofglen, uma personagem marcante, rebelde e forte.

De Stars Hollow a Gilead, com um seriado desses, o mundo inteiro vai se tingir de vermelho enquanto aguarda as próximas temporadas.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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