Setembro é marcado por diversas datas comemorativas. É o mês de destaque na campanha de prevenção ao suicídio, engloba o dia da independência do Brasil, o dia nacional de luta da pessoa com deficiência, o dia da árvore, o início da primavera, dentre diversas outras datas temáticas.
Um marco especial que vem recebendo maior atenção a cada ano é o dia 23 de setembro, escolhido para celebrar a bissexualidade. A intenção é dar visibilidade para as pessoas bissexuais e combater a sua marginalização. A data surgiu em 1999 a partir de três ativistas estadunidenses, Wendy Curry, Michael Page e Gigi Raven Wilbur, e foi escolhida por ser o aniversário de morte de Sigmund Freud, estudioso da bissexualidade.
Na época, 30 anos após Stonewall, seus criadores quiseram chamar atenção para um grupo comumente ignorado ou mal compreendido, tanto entre héteros quanto entre outros membros da comunidade LGBTQIA+. Mesmo em 2020, a bissexualidade ainda enfrenta problemas pela falta de compreensão a seu respeito e por uma visão binária e estreita de se enxergar as pessoas como gays ou héteros e nada mais do que isso.
Nesse âmbito, a bissexualidade muitas vezes é encarada como uma fase, como uma incapacidade de se assumir como gay/lésbica, como um estado de confusão, dentre diversas outras interpretações problemáticas. Nessa visão, pessoas bissexuais tendem a ser vistas como confusas, atormentadas, controversas, e isso se reflete na forma como são retratadas em obras de ficção.
Um relatório da GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation) demonstra que, nas principais obras audiovisuais entre 2017 e 2018 (incluídos programas de canais abertos, fechados e plataformas online), foram identificados 329 personagens LGBTQIA+. Desses, apenas 28% (92) eram bissexuais.
No anuário seguinte, que registrou os programas de 2018 a 2019, foram identificados 433 personagens LGBTQIA+, sendo 27% (117) de personagens bi. Apenas uma mulher trans e um homem trans. Nesses levantamentos, foram identificados também desequilíbrios de gênero, existindo muito mais mulheres bi (84) do que homens (33), o que levanta o alerta sobre o fetiche envolvendo casais de mulheres.
Além disso, foram constatados alguns estereótipos que acompanham com frequência a construção desses personagens. São eles: a) Pessoas bi usando sexo como estratégia de manipulação ou como uma transação para obter algo; b) Tratar da atração por mais de um gênero como algo “temporário” e como estratégia de roteiro; c) Retratar pessoas bissexuais como sem moral, obsessivas e/ou não merecedoras de confiança.
Foi detectada também uma ausência do termo “bissexual”, pois a tendência é de que os personagens não se apresentem como tal, nem conversem a respeito de forma expressa. Isso gera uma invisibilidade ainda maior e pode ser interpretado como uma tentativa de apagamento e/ou de encarar a bissexualidade como algo nebuloso e passageiro, que não merece ser debatido.
Por todos esses motivos, é importante celebrar as obras com personagens bi bem construídas e exigir dos criadores uma maior (e melhor) representação bissexual nas telas. Listamos algumas mulheres bi que tem se destacado em filmes e seriados e que são exemplos positivos de construção de personagens bissexuais no audiovisual.
Annalise Keating – How to get away with murder
Annalise é a protagonista da série How to get away with murder. Ao longo de várias temporadas ela foi mostrada como uma mulher extremamente inteligente, com um pensamento estratégico e criativo de fazer inveja a qualquer um. Ela domina os ambientes e tem uma presença muito forte. É combativa e causa muito desconforto nas pessoas à sua volta. Professora e advogada, Annalise tem uma trajetória profissional que, apesar de vários altos e baixos, alcança feitos incríveis.
Ela teve problemas para aceitar seus sentimentos pela também advogada Eve, o que a levou à terapia e ao contato com um profissional manipulador com quem acabou se casando. Ao longo das temporadas, Annalise tem alguns outros relacionamentos, mas seus sentimentos por Eve nunca desaparecem e a personagem volta para a série em determinado momento.
A obra tem um foco bem maior na esfera profissional e criminal da personagem, mas questões pessoais se entrelaçam com a trama principal. Na última temporada, Annalise se debruça mais sobre seus sentimentos e sobre o medo que a impediu de viver uma história de amor com Eve no passado. Em uma cena maravilhosa, ela conversa com a mãe (interpretada pela incrível Cicely Tyson), já bem idosa e em processo inicial de demência, sobre amar uma mulher. Que cena!
Petra Solano – Jane, the virgin
No seriado Jane, the virgin, a personagem Petra tem um excelente desenvolvimento. Inicialmente apresentada como vilã novelesca e como rival da protagonista pelo amor de Rafael, ela depois se revela uma das melhores personagens da obra. Forte, autoritária, de certa forma fria e superficial, vamos compreendendo que ela na verdade guarda diversas inseguranças e que é uma pessoa amorosa, uma ótima mãe e uma boa amiga. Ela é dedicada, inteligente, competente e mostra a todos que é ótima nos negócios.
Ao mesmo tempo em que vai descobrindo várias facetas de si mesma, Petra se apaixona pela advogada Jane Ramos (JR para não confundir com a Jane protagonista). O romance entre elas traz leveza e alegria para Petra, permitindo finalmente que ela experiencie emoções até então desconhecidas, como o nervosismo de um primeiro encontro, o riso solto por qualquer motivo e as mensagens até de madrugada. O romance torna a personagem mais sensível, mais emotiva e mais empática, o que há muito tempo ela ensaiava, mas que ainda não ocorria com naturalidade.
Petra foi considerada por muitos como uma excelente personagem e definitivamente foi quem mais cresceu ao longo das cinco temporadas.
Judy – Disque amiga para matar
A série mostra a aproximação entre duas mulheres que se conhecem em um grupo de apoio para pessoas que estão em luto. Judy é uma mulher sensível e bondosa, que passou por alguns relacionamentos abusivos e por situações traumáticas. Ela se sente presa ao antigo parceiro e tem muita dificuldade para dizer não e para se posicionar, o que a coloca em situações difíceis que vão escalonando em medidas catastróficas.
É com Michelle que ela consegue viver alguns momentos de calma e alegria. As duas se conhecem no lar de idosos em que Judy trabalha e onde a mãe de Michelle passa a morar. Elas se aproximam, inicialmente como amigas, depois paqueram e tentam dar uma chance para esse novo relacionamento. Mas tem que lidar com a difícil convivência com uma ex e com as confusões de Judy, que tendem a sempre ressurgir.
Apesar da personagem ser bem problemática, sua bissexualidade não faz parte das questões a serem resolvidas. Na verdade, seu envolvimento com Michelle é tratado com simplicidade, com leveza e faz bem para a moça. É um mar de calmaria em meio às bagunças em que Judy se envolve.
Nomi – Grown-ish
Grown-ish é um spin-off derivado da série Black-ish. Enquanto a primeira mostra o dia a dia de uma família negra lidando com questões profissionais, amorosas e com a criação de filhos, a segunda mostra a filha mais velha indo para a universidade. Nesse novo ambiente, a protagonista Zoey se aproxima de diversos amigos, sendo um deles Nomi Segal.
Nomi é judia, bissexual e sobrinha do reitor. Fervorosa defensora da bissexualidade (“Respect the letter, bitch”), ela não tem paciência para ouvir dos outros que se trata de uma fase ou de indecisão. Ela sabe quem é e não aceita ser questionada sobre isso. Ao mesmo tempo, ela se interessa por um colega e fica desconfortável ao descobrir que ele é bi, sendo confrontada por seus próprios preconceitos. A série aborda as complexidades de uma personagem bissexual em processo de amadurecimento, se conhecendo e tentando compreender o mundo à sua volta.
Callie Torres – Grey’s Anatomy
“Eu sou bissexual. E daí? É chamado de LGBTQ por alguma razão. Tem um B ali e não significa ‘Badass’ (Fodona). Ok, significa, mas também significa Bi”, desabafa a doutora Torres para Meredith Grey.
Isso sim é representação, com todas as letras, sem titubear, de forma direta, honesta e fodona.
A personagem Calliope (Callie) Torres, de Grey’s Anatomy, da criadora maravilhosa Shonda Rhimes, é uma mulher competente, complexa, animada e apaixonante. Nas primeiras temporadas, ela é identificada como uma mulher heterossexual. Ela namora e se casa com o desajeitado O’Malley e também tem relações intensas com seu melhor amigo Mark Sloan, com quem inclusive tem uma filha (em um momento em que Callie está separada de Arizona). No final da quarta temporada, Callie se apaixona pela doutora Erica Hahn e depois conhece Arizona Robbins – com quem vive por longas temporadas um romance complexo, intenso, apaixonado e cheio de altos e baixos. Na sétima temporada as duas se casam.
Nem tudo são flores, claro, ainda mais quando se fala de tudo de mais absurdo que acontece em Grey’s Anatomy. Mas a personagem de Callie, mesmo depois de ter saído do seriado, continua como um ícone de representação de uma mulher bissexual.
Ana e Vitória, as personagens do filme de Matheus Souza
No filme de ficção Ana e Vitória, de Matheus Souza, as duas cantoras interpretam versões de si mesmas. Destacamos, então, que falamos aqui das personagens dentro da narrativa do filme – e não das pessoas reais.
Mais do que sobre qualquer relação amorosa, o filme é sobre compartilhar sonhos e realizações com uma grande amiga. A amizade das duas é pura sororidade, e é tão bom ver exemplos de uma amizade no cinema brasileiro sem rivalidades, sem essa ideia de que as mulheres só podem existir competindo umas com as outras.
Mas bem, outro ponto de destaque é a representação da sexualidade das duas. Ana começa namorando uma menina, acabando e se apaixonando por outra – afinal, como ela mesma diz, ela não sabe viver sem um grande amor. Mais para o final do filme, ela namora com um cara com a mesma intensidade. Já Vitória começa o filme com interesses amorosos e sexuais em homens, mas logo na primeira festa fica com uma menina. Vitória comenta com um amigo: “acabei de ficar com uma menina pela primeira vez”, e ele responde: “não sabia que você era bi”, e ela diz: “nem eu”.
Tudo fluido, leve, sem explicações didáticas, apenas a expressão de suas vivências. Uma representação da bissexualidade para as novas gerações.
Com colaboração de Lina Távora.