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A vida invisível de Eurídice Gusmão | Crítica

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A vida invisível

Esta é a história de Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido”.

Há muitos anos que um livro não me emocionava tanto. Sem fantasia, sem magia, sem grandes aventuras. Ou mesmo sem aventura nenhuma…

A vida invisível de Eurídice Gusmão é justamente a história de uma mulher que poderia ter sido, mas não foi. Não por ela, que era cheia de sonhos, que tinha vontade de se desafiar e se superar. Inteligente, talentosa, mas que foi ensinada a “não ser muito Eurídice”. Pelos pais, pelo marido, pelos vizinhos, pela vida. E, assim, foi se contendo, se privando, se calando e murchando. Até não ser muito Eurídice.

Logo na carta aos leitores, a autora Martha Batalha esclarece quem são as personagens principais desse livro. Como ela define: Eurídice e Guida são as minhas e as suas avós. Elas são o retrato das mulheres do início do século passado e de todos os fatores que as fazem ser quem são. Ou talvez que as fizeram deixar de ser quem eram.

No livro, Eurídice e Guida são duas irmãs de classe média, filhas de um comerciante português e de uma dona de casa brasileira. Cresceram próximas e confidentes, até que a idade atrapalhou. Guida já jovem adulta, com prioridades diferentes da irmã caçula, começou a guardar segredos e um dia desapareceu. Sem saber o que aconteceu com a irmã, Eurídice segue a vida que trilharam para ela, e anos se passam até que as duas, já mulheres feitas (com toda a simbologia que essa expressão pode carregar), voltam a ter notícia uma da outra. Com trajetórias bem diferentes, mas ambas nocauteadas pela vida.

Guida enfrenta o lado feio mais escancarado da sociedade. É obrigada a lidar com o preconceito, com a hipocrisia e com a invisibilidade dos párias. Eurídice tem uma vida confortável, uma família nos moldes esperados e a segurança que isso lhe proporciona. No entanto, lida com o lado feio disfarçado da sociedade. A invisibilidade infligida a todas nós, mulheres, párias ou não. E que muitas vezes nem é entendida como tal.

Como poderia Eurídice ter do que reclamar? Com sua casa boa, sua empregada e seu marido, “que nem trabalho dá”. Como entender que, mesmo sem dificuldades financeiras e sem problemas de saúde, ainda assim, não é feliz? 

Por que inventar tantos projetos? Por que procurar o que fazer? Por que tentar ocupar as horas de seus dias? Como diria a vizinha Zélia: “tadinha de Eurídice, está perdendo o juízo. Só pode ser início de demência”.

Ninguém entendia que Eurídice precisava de mais. Que queria ser vista, ser ouvida e ter o que fazer. E que não ter nada disso era a verdadeira demência. O grande ponto do livro é justamente a falta de aventura, a falta de propósito, a falta da mais básica das essências que nos faz ser quem somos. E como isso engessou tantas e tantas mulheres. Inclusive, muitas mulheres que nós mesmas provavelmente conhecemos.

O livro foi adaptado para o cinema, com direção de Karim Aïnouz e a história, naturalmente, passou por algumas alterações.

Eurídice foi apresentada como uma talentosa pianista, que sonha em entrar no conservatório de  música de Viena e não gostaria que nada atrapalhasse seus planos. No entanto, se viu presa a convenções sociais, estereótipos de gênero e a uma vida que não escolheu, sendo continuamente frustrada em seus planos. 

Por mais duro que seja ter um sonho e não conseguir realizá-lo, também é cruel não poder ter sonho nenhum. Na obra literária, o desejo de Eurídice não é entrar no conservatório e sim ter uma paixão a que se dedicar. Ela conta as horas e os minutos de uma existência vazia, em que é mãe, esposa e dona de casa, mas não é Eurídice.

Eurídice em A vida invisível

Vez por outra, ao longo dos anos, ela desenvolve projetos, paixões e talentos. E se dedica a eles com ferocidade, com a intensidade de quem tem muito a oferecer e que precisa de espaço para ser ela mesma. E, um por um, todos se tornam proibidos para ela. Assim, Eurídice torna-se invisível. Nem seu marido, nem seus filhos, nem seus netos sabem quem ela realmente é, seus talentos, suas experiências, suas forças.

Perdi minhas avós muito cedo e não tive a oportunidade de ouvir suas histórias (contadas por elas mesmas), então só posso imaginar. Elas não eram irmãs, mas eram primas, e me parece que uma era meio Guida e outra meio Eurídice. Apesar de que, pensando bem, como Martha Batalha disse, no início da obra, não eram só elas. Todas as nossas avós eram um pouco como as irmãs Gusmão. E quem sabe algumas de nossas mães. E quem sabe algumas de nós.

Fernanda Montenegro

Selecionado como opção brasileira para o Oscar (para concorrer em uma segunda fase, que escolherá os indicados à categoria de melhor filme estrangeiro), o longa-metragem deixa de se chamar “A vida invisível de Eurídice Gusmão” para ser “A vida invisível”. O novo título traz Guida para o protagonismo junto com a irmã, já que ela também é tornada invisível, apesar das formas diferentes para que isso aconteça. E engloba também as milhares de mulheres que, com experiências parecidas e ao mesmo tempo tão individuais, foram (e continuam sendo) invisibilizadas ao longo da história.

Durante a campanha de divulgação do filme, foi lançada a hashtag #InvisivelNuncaMais. O objetivo é divulgar os nomes e as histórias de mulheres que viveram grandes feitos, que revolucionaram nossa sociedade de algum forma e que, mesmo assim, não são conhecidas, tendo tido seus nomes ocultados da História oficial.

Esperamos que o livro e o filme sejam uma boa oportunidade para mais pessoas conhecerem a história de Eurídice. Para que suas palavras não fiquem restritas ao fundo de uma gaveta, ignoradas pelo próprio marido e pelos filhos, que passaram pela vida da protagonista sem ouvi-las, sem nem mesmo imaginar que essas palavras poderiam existir. 

Que possamos conhecer mais histórias de mulheres. E que nos dediquemos a ouvir as histórias das nossas próprias Eurídices, de preferência direto da fonte, se tivermos sorte.

Cartaz A vida invisível

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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