Há 52 anos, falecia Alice Guy.
Você conhece a cineasta?
Há alguns anos, Alice Guy-Blaché foi “re-descoberta” – palavra absurda para uma mulher que foi protagonista na criação do cinema mundial. Quando se fala dela, percebo colocações e surpresas similares, que também foram as minhas: como nunca ouvi falar de Alice Guy? Como não a encontrei nos livros de história do cinema? Como não estudei seus filmes nos cursos sobre a sétima arte? Como simplesmente não sabia que ela existia há tão pouco tempo, sendo ela uma figura tão fundamental de uma arte que admiro?
Quem foram os “pais” do cinema? É bem mais provável saber a resposta para essa pergunta.
Foram os irmãos Auguste e Louis Lumière, que em 28 de dezembro de 1895, apresentaram a primeira exibição pública de cinema, em Paris, na qual era mostrado um trem chegando na estação. Com essas imagens – e a sua exibição aos espectadores – nascia o cinema. As cenas eram predominantemente documentais, no geral, a figura humana era mostrada de corpo inteiro e a câmera era fixa.
Sobre a origem do cinema ficcional, os livros da história do cinema sempre destacaram Georges Méliès, o mágico que já fazia teatro e passou seus truques para o cinema.
Em que momento, então, a história “esqueceu” de apresentar a “mãe” do cinema?
Alice foi sim a criadora do cinema narrativo. A cineasta dirigiu mais de mil filmes durante 20 anos de carreira e administrou seu próprio estúdio (Solax). Ela foi uma cineasta e diretora de cinema antes mesmo de existirem esses termos e definições de cargos. Ela foi a primeira a unir roteiro, direção e produção em uma única pessoa. Ela apostava em experimentações, não apenas com a narrativa e a estética do filme, mas empreendia inovações técnicas com som e cores. Ela recebeu reconhecimento de crítica, além de também ter tido sucesso financeiro, por seus feitos. Ela dava palestras e era considerada destaque na indústria e na academia.
“Be natural” – aja naturalmente, era a frase que ela repetia aos atores. Ela também inovou com as cenas externas, filmadas em locações reais. Havia inovação em sua linguagem e estética, um alfabeto visual que hoje não damos mais valor de tão comum que nos parece. Alice Guy trabalhou com diferentes formatos e gêneros cinematográficos.
Enfim, ela foi grande, e mesmo assim, foi apagada da história.
A invenção do cinema de ficção
A Fada do Repolho (The Cabbage Fairy) foi lançado em 1896, quando a cineasta tinha 23 anos e apenas um ano depois do marco inicial do cinema. O curta é considerado o primeiro filme narrativo da história do cinema.
“Na época, as pessoas ainda filmavam cenas de rua, trens chegando na estação etc., eu era a filha de um vendedor de livros e eu amava os livros, eu tinha lido bastante, e tinha feito teatro amador. Eu pensei: algo melhor pode ser feito. Então, eu sugeri ao senhor Goumont que eu filmasse algumas cenas. Ele disse: ‘parece-me uma coisa boba para uma garota fazer, mas você pode tentar, se quiser; com uma condição, que seu trabalho no escritório não seja prejudicado'”- Alice Guy-Blaché, no documentário The Lost Garden: The Life and Cinema of Alice Guy-Blaché (1995).
A cineasta fundou, assim, a narrativa de ficção no cinema, antes mesmo do conhecido Méliès. No filme A Fada do Repolho, Guy contava a história do nascimento de uma fada. Assim, temos representatividade e representação das mulheres nos primórdios da sétima arte.
Em 1906, ela dirigiu o filme As consequências do feminismo, uma sátira na qual os papéis de homens e mulheres são invertidos, mostrando homens cuidando de casa e dos filhos, mulheres saindo para trabalhar e bebendo no bar.
No mesmo ano, ela também dirigiu o filme Nascimento, vida e morte de Cristo (Vie et Passion du Christ), considerado a primeira grande produção do cinema. O filme conta a história de Jesus Cristo por meio da encenação das passagens bíblicas. O filme chegou a ser atribuído ao seu assistente de direção – enraizando o seu apagamento na história do cinema.
Mais um marco? Sim, temos.
Alice Guy dirigiu, em 1912, já casada e morando nos EUA, o filme A Fool and His Money, que apresentava pela primeira vez um elenco todo com atores negros. Para Ava Duvernay, no documentário Be Natural, mesmo não sendo um filme progressista, é relevante por apresentar essa “imagem cinematográfica negra, que antes ainda não havia sido vista dessa forma”.
Alice Guy
Ela nasceu em 1o de julho de 1873, em Saint-Mandé, perto de Paris. Viveu a infância no Chile, onde o pai era livreiro, mas voltou a Paris quando o pai perdeu tudo. Quando jovem, com a morte do pai e do irmão e do casamento da irmã, precisou arranjar uma maneira de sustentar a si e à mãe. Em 1894, Alice foi contratada por Léon Gaumont para trabalhar na empresa de fotografia como secretária.
A empresa viraria uma potência da indústria cinematográfica francesa – em atuação até os dias de hoje. Foi lá que ela realizou suas primeiras produções. Ela também passaria a coordenar toda a parte de produção cinematográfica da empresa (head of production).
Em 1907, casou-se com Herbert Blaché, que também era cineasta. O casal se mudou para os Estados Unidos. Em 1910, ela fundou seu próprio estúdio, Solax Film, nas proximidades de Nova York, em uma época ainda pré-Hollywood.
Quando se separou, voltou a morar na França, em 1922. Escreveu histórias infantis e matérias para revistas com pseudônimos. Continuou escrevendo roteiros de cinema com o seu nome, mas não conseguiu mais produzir seus filmes da França. Tentou recuperar suas obras, muitas lançadas nos EUA sem o devido crédito. Ela também tentou publicar em vida a sua autobiografia, mas não conseguiu uma editora – o que só aconteceu após sua morte. Ela faleceu nos EUA em 24 de março de 1968.
Referências
- Be Natural: A História Não Contada de Alice Guy-Blaché, documentário dirigido por Pamela B. Green resgata a trajetória da diretora.
Uma resposta em “Alice Guy-Blaché: a invenção do cinema de ficção e o apagamento de sua criadora”
[…] alguns anos, por exemplo, o mundo “redescobriu” Alice Guy, a cineasta criadora do cinema narrativo! Se você não ouviu falar dela, não se sinta culpado. […]