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Anne – Encantadora with an E | #MulheresEmSérie

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A série original da Netflix Anne with an E, criada por  Moira Walley-Beckett e dirigida por Niki Caro, ganhou sua segunda temporada recentemente. A série tem conquistado o público com cenários bonitos, mensagens importantes e, principalmente, uma protagonista animada, inteligente, tagarela e que tem uma forma própria de ver e se encantar com o mundo.

Anne Shirley tem 11 anos e passou por provações e por situações abusivas em um orfanato e em lares adotivos. Talvez por isso, a protagonista apoie-se com afinco na literatura e em sua imaginação. Ela foge para mundos encantados, belos e emocionantes, chegando a ter dificuldade em controlar as fantasias e a empolgação com situações que os outros acham difícil de compreender.

Ao por do sol, Anne passeia de carroça com Mathew. A jovem olha a paisagem e segura seu chapéu para que não voe.

Por uma falha de comunicação, Anne é adotada por dois irmãos idosos, Matthew e Marilla Cuthbert, que vivem na área rural da Ilha Príncipe Eduardo, no Canadá. A menina fica em polvorosa, encantada com a beleza do lugar, com a possibilidade de ter uma família, amigas e, finalmente, um lugar para chamar de lar. Infelizmente, os irmãos esperavam por um garoto para ajudar em sua fazenda, Green Gables, e sentem-se confusos com o jeito de Anne, que fala pelos cotovelos e elogia do cavalo à relva e dá nome às árvores, ao rio e à estrada, imaginando princesas, cavaleiros, fantasmas, amores trágicos e aventuras emocionantes a cada esquina.

Apesar da rejeição e do bullying de alguns moradores (adultos e crianças), a convivência e o jeito de Anne vão conquistando a maioria do povoado de Avonlea e ela alcança o que sempre desejou: pais bondosos, uma melhor amiga e muitas aventuras em cenários de tirar o fôlego.

Gif em que Anne e Diana caminham por uma floresta cheia de neve, com roupas de inverno, e sorriem uma para a outra, encostando suas cabeças. Embaixo aparece uma legenda em que se lê "Sua melhor amiga para todo o sempre".

O seriado é baseado no livro canadense de 1908, Anne de Green Gables, de Lucy Maud Montgomery. É impossível não compará-lo com um livro que surgiu poucos anos depois, em 1913, da autora Anna Sewell, que também trouxe uma protagonista encantadora, doce, que via o mundo com olhos curiosos e que teve o poder de transformar a comunidade para onde se mudou ao ser adotada: a conhecidíssima Poliana. Ambas órfãs, adotadas por senhoras idosas, solteiras, de certa forma ríspidas e rigorosas, que, aos poucos, cedem à afetuosidade e ao carinho que as meninas trazem para suas vidas.

Anne e Marilla apoiadas no tronco de uma árvore, próximas uma da outra.
Anne e Marilla Cuthbert

Diferente de Poliana, que focava no lado positivo das coisas e procurava sempre se alegrar com os acontecimentos, Anne tem uma tendência para o drama e o exagero. Ao mesmo tempo em que procura beleza em tudo o que vê, a protagonista de Green Gables é apegada em excesso à aparência e sofre exageradamente por não se enquadrar nos padrões de beleza que julga tão importantes. Apesar de essa característica ser atenuada no seriado, a personagem manteve seu apego por cabelos pretos (tão diferentes dos seus ruivos), a crítica ferrenha às sardas (que são abundantes em seu rosto) e o desejo por vestidos com mangas bufantes (muito mais elegantes dos que os que ela pode ter). A insistência em se achar feia e considerar um castigo ter que se olhar no espelho destoa das outras mensagens passadas pela série e preocupa pelo potencial de alcance que a obra pode ter junto ao público infantil e infanto-juvenil. Apesar disso, serve para mostrar uma protagonista complexa, imperfeita e em processo de amadurecimento.

Anne usa uma coroa de flores na cabeça e pássaros voam próximos do seu rosto.

O seriado da Netflix traz atualizações interessantes em relação ao livro, permitindo discussões que inexistiam na obra de 1908, especialmente sobre temas como feminismo, homossexualidade e racismo. É o caso da criação do núcleo do CCMP (Círculo de Costura das Mães Progressistas), um grupo de mães de Avonlea que se reúne para discutir e lutar pelos direitos das meninas. Uma das principais defesas do grupo é de que a educação é tão importante para as mulheres quanto para os homens e, em seus encontros, fala-se sobre feminismo, sufrágio, as mudanças entre gerações e o que as mães esperam para suas filhas (inclusive na comparação entre casamento x educação).

Apesar de se apresentar com essa natureza e esse objetivo, o grupo é ainda muito retrógrado. Para desafiá-lo, surge, na segunda temporada, uma professora na escola da região. Uma moça que pilota motos, veste calças, se recusa a usar espartilho e é defensora de métodos criativos e inovadores para uma educação participativa. A personagem já existia no livro, mas sem essa caracterização que serve para chocar a comunidade e encantar a Anne da série.

A personagem Miss Stacy, professora de Anne, pilota uma moto na estrada e dois homens olham para ela.

Assim como o CCMP foi utilizado para introduzir o tema do feminismo de forma explícita, a produção da Netflix providenciou outros acréscimos. Apesar do livro não conter nenhum personagem negro, o seriado apresenta, também na segunda temporada, o personagem Bash, que entra na obra e abre espaço para discutir o racismo. O jovem surge a partir da convivência com Gilbert Blythe, colega de turma de Anne que saiu de Avonlea para ampliar suas perspectivas e conhecimentos de mundo. Com Bash, ele viaja para Trinidad e conhece uma realidade muito diferente da que sempre teve contato. Ao voltar à Ilha Príncipe Eduardo, Bash vai com ele e choca a pequena comunidade, cuja maioria nunca conheceu uma pessoa negra.

Bash e Gilbert andam entre casas como se estivessem preocupados e apressados. Ao fundo, vários personagens negros conversam e negociam produtos pela rua.

Na bela e encantadora região de Gilbert e Anne, Bash tem atendimento médico negado, é proibido de andar de trem, de comprar nos estabelecimentos, dentre várias outras situações degradantes e excludentes. Em sua busca por identidade e acolhimento, ele descobre uma região ocupada apenas por negros, o que abre novas perspectivas de relacionamentos e mais um núcleo para o seriado – que poderia ser melhor desenvolvido em uma terceira temporada.

Seis crianças, dentre cinco meninas e um menino, estão sentadas no chão conversando e abrindo uma cesta de piquenique.

Além de Bash, o seriado cria o personagem Cole, que não existia na obra literária. O rapaz é um dos colegas de Anne no colégio e não se identifica com os outros rapazes, estando constantemente afastado, calado e focado em seus desenhos. No decorrer da segunda temporada, ele e Anne tornam-se amigos e o jovem compartilha com ela seu processo de autodescoberta e aceitação como gay. Ao mesmo tempo, a série desenvolve melhor uma personagem do livro, Josephine, tia da melhor amiga de Anne e que se encanta com a curiosidade e espontaneidade da amiga da sobrinha, interessando-se por conhecê-la melhor e tê-la sempre por perto.

O que não é trabalhado no livro, mas fica bem explícito na série, é que tia Jo foi casada com uma mulher, Gertrudes, o grande amor de sua vida e que faleceu recentemente. Tia Jo é uma figura de referência e segurança para Cole, ajuda Anne a entender melhor o amor e os relacionamentos e ensina Diana, sua sobrinha, a ampliar sua visão de mundo e a se interessar por uma vida mais ampla do que a estabelecida pela família conservadora em Avonlea.

Gif em que tia Josephine fala para Anne "E nós vivemos uma vida completa e maravilhosa juntas".

A partir das conversas com tia Jo, Anne pensa sobre as possibilidades do casamento e no que espera para seu futuro e seus possíveis companheiros. Ao mesmo tempo em que brinca com a ideia de princesas, cavaleiros e amores épicos, ela vai formulando aos poucos o que quer e o que não quer para a sua vida. É delicado e singelo assistir à personagem, com sua visão ainda juvenil e inexperiente, compreendendo de forma tão aberta e sem vícios o amor. Uma menina que já sabe o que deseja para si quando for o momento: um parceiro de vida, companheiro, que entenda que não é melhor do que ela, que a respeite, a estimule e potencialize suas oportunidades. E define: isso só vai acontecer quando ela quiser, sem pressa e sem pressão. E mais: se se interessar por alguém, não precisa esperar que a outra pessoa tome a atitude. Afinal, uma menina com tanto talento para as palavras e emoções pode muito bem tomar as rédeas dos seus próprios romances.

Assim, um livro que era sobre uma jovem órfã, falante e curiosa, que chega em uma comunidade pacata e a transforma, passa a ser um seriado sobre um universo bem mais complexo e interessante para diversos públicos. Uma jovem que aprende e ensina sobre as diferentes formas de amor e de família; uma comunidade que se depara com sua própria homofobia e racismo; as oportunidades de transformação e libertação para meninas a partir da educação; o processo delicado da maturidade e do descortinamento de mundo que vem com o crescer; e muito mais. Como diz Anne tão sabiamente: existem infinitas possibilidades quando se abre espaço para a imaginação.

Anne está em um campo de flores, ao por do sol, e usa uma coroa de flores na cabeça.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

2 respostas em “Anne – Encantadora with an E | #MulheresEmSérie”

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