Categorias
Pesquisa

bell hooks e o seu olhar oposicional: o cinema e a intervenção crítica necessária das mulheres negras

Compartilhe!

bell hooks

A escritora e ativista bell hooks morreu nesta quarta-feira, dia 15 de dezembro de 2021, aos 69 anos. Assim, para marcar o seu legado e para homenagear essa autora ícone do feminismo negro, trazemos a resenha desse seu texto referencial para o audiovisual.

O texto de bell hooks O olhar oposicional: espectadoras negras inicia-se com um relato pessoal para demonstrar a tese que baseará a discussão: o olhar tem poder. Toda a discussão construída ao longo do texto possui o foco na questão racial, especificamente sobre mulheres negras. O olhar fixo é tratado como ato político, uma vez que houve a punição das pessoas negras pelo seu olhar: negava-se às pessoas escravizadas o direito de olhar.

Assim, “as tentativas de reprimir o nosso direito, o direito de pessoas negras de olhar, produzira em nós um desejo quase irresistível de olhar, um anseio rebelde, um olhar oposicional” (p. 484). E esse olhar não é apenas um olhar, é um olhar de forma desafiadora. bell hooks utiliza-se de Michel Foucault para indicar que as relações de poder e as estruturas de dominação estão intimamente ligadas. Mas onde há relações de poder, há resistência: é necessário buscar as possibilidades de agenciamento pelas margens, pelo que está sendo excluído do centro.

Outro autor constantemente utilizado no texto é Stuart Hall para discutir o processo de reconhecer o agenciamento das pessoas negras como espectadoras/es negras/os. Ele se posiciona contra a representação da negritude como totalizante construída pelas pessoas brancas:

O “olhar” foi e é um local de resistência para pessoas negras colonizadas, em escala global. Os grupos subordinados nas relações de poder aprendem, por experiência, que existe um olhar crítico que “olhar” para documentar, e que é oposicional. Na luta da resistência, o poder do dominado para afirmar o agenciamento, reivindicando e cultivando a “consciência”, politiza as “relações com o olhar” – aprende-se a olhar de certa maneira, para que se possa resistir (p. 485).

bell hooks traz a experiência da população negra estadunidense na primeira vez que tiveram a oportunidade de assistirem a filmes e a programas de televisão. Essa população viu, então, que aqueles meios de comunicação em massa faziam parte de um sistema de conhecimento e poder e que, portanto, reproduzia e objetivava manter a supremacia branca. O olhar oposicional das pessoas negras ao assistirem ao que era produzido no cinema e televisão reagiu. Essa reação desenvolveu um cinema independente produzido por pessoas negras. Assistir à TV, portanto, é uma ação ativa para desenvolver a condição de espectadora crítica: “Antes da integração racial, espectadoras/es negras/os de filmes e de televisão vivenciaram prazer visual num contexto em que o ato de olhar dizia respeito, também, ao confronto e à contestação” (p. 486).

Os processos questionadores do olhar oposicional também valem para o cinema feito por pessoas negras, uma vez que havia a preocupação sobre o racismo, sobre questões raciais e sobre a representação de pessoas negras, mas raramente se discutia na tela a questão de gênero. Já que a política falocêntrica estava contida no ato de ser um espectador negro – aqui o homem negro: se não se pode olhar para mulheres brancas sem punição, esse olhar reprimido aparecia nas telas e nos palcos:

Em seu papel como espectadores, esses homens conseguiam entrar num espaço imaginativo de poder falocêntrico que mediava a negação racial. Essa relação gendrada com o ato de olhar fez a experiência dos homens negros espectadores ser radicalmente diferente da experiência das mulheres negras espectadoras (p. 488).

As mulheres negras eram representadas a partir desse olhar gendrado, ou seja, como objetos. E se as mulheres negras escreveram pouco sobre a experiência de se ver nas telas, o silêncio presente é construído como reação à ausência e à negação cinematográfica imposta.

Ao falar sobre a cinematografia no passado, bell hooks indica que as mulheres negras construíram o olhar dentro do campo do cinema a partir da ausência de seus corpos na tela, trazendo uma perspectiva falocêntrica de ser espectadora, ou seja, as mulheres brancas que são o foco de desejo e admiração dos homens.

Conversas que bell hooks teve com mulheres negras apontam que a maioria delas não ia ao cinema com a expectativa que veriam uma representação convincente da feminilidade negra, ou seja, o olhar dessas mulheres já sabia que a cinematografia era racista e apagava as mulheres negras das telas. Essa ausência presente servia para evidenciar as mulheres brancas e reiterá-las como foco do olhar falocêntrico. Além disso, as mulheres brancas deveriam ser ultra-brancas, como marcador de diferença entre elas e as mulheres negras – o Outro, sendo mais um mecanismo, claro, de manutenção da supremacia branca.

Há, portanto, uma violência contra a imagem das mulheres negras. Muitas mulheres não davam importância para o cinema, e outras o olhavam com cumplicidade e desejo, pois, assumindo uma postura de subordinação, essas pessoas submeteram-se à capacidade do cinema de seduzir e trair. Sua visão estava “ofuscada” pelo cinema. Cada mulher negra com quem eu conversava, que ia muito ao cinema e que gostava muito dos filmes de Hollywood, dizia que, para que se pudesse vivenciar completamente o prazer do cinema, tinha que se fechar à crítica, à análise; era preciso esquecer o racismo. Principalmente, não pensavam sobre o sexismo (p. 492).

bell hooks

Esse olhar de adoração das mulheres negras trazia prazer em meio à negação, é ir ao cinema e ver a vida de uma mulher branca, vivenciar o prazer da história sendo contada e depois retornar às suas vidas. Entretanto, a recusa à identificação do que é mostrado na tela é presente na vida das mulheres negras. Se elas analisassem profundamente o que era construído no cinema, o prazer dava lugar à dor. Parar de olhar, então, era um mecanismo de resistência. É o protesto contido no virar às costas para a tela.

A própria experiência de bell hooks no cinema transparece a dor de olhar para a tela e ver ausências presentes construídas para perpetuar a branquitude. Com o seu desenvolvimento do olhar oposicional, interroga os filmes, fazendo com que suas relações fílmicas fossem construídas nos filmes estrangeiros e estadunidenses independentes.

Assim, “espectadoras negras ativamente optaram por não se identificar com o sujeito imaginário do cinema, uma vez que tal identificação as incapacitava” (p. 495). Com o olhar oposicional para a tela, é possível que as mulheres negras avaliem criticamente a construção do cinema, escolhendo não se identificar com a vítima ou com o algoz. O olhar dessas mulheres partia de um local de rompimento – o que é de extrema importância para indicar a rejeição ao sistema dominante de poder.

Na crítica cinematográfica feminista não há reconhecimento dessa condição das mulheres negras em ser espectadoras. A construção dessa crítica não reconhece as questões de raça, focando-se apenas numa diferença sexual, apagando a condição das mulheres negras na cinematografia, portanto, “apesar das intervenções da crítica feminista visando à desconstrução da categoria ‘mulher’, que destacam a significância da raça, muitas críticas cinematográficas feministas continuam a estruturar seu discurso como se falassem sobre ‘mulheres’, quando, na verdade, falam somente sobre mulheres brancas” (p. 496). 

Essa narrativa totalizante da mulher apaga os contextos sócio-históricos e culturais presentes nas mulheres. Há esquemas de segurança das mulheres negras contra a violência presente nos discursos da comunicação que criticam os filmes e os programas de televisão, e sempre é importante questionar o silêncio e a falta de abertura das feministas envolvidas na construção dessa teoria crítica feminista que não consideram o olhar oposicional das espectadoras negras. 

Buscar um novo enfoque na raça e na representação no campo da teoria crítica cinematográfica é uma forma de intervir ativamente nos campos da crítica atual, combatendo o processo de apagamento e repressão histórica das mulheres negras, focando na discussão da condição delas como espectadoras:

Devido ao contexto da exploração de classe e da dominação racial e sexista, tem sido apenas por meio da resistência, da luta, da leitura e de olhar “contra a corrente” que as mulheres negras têm conseguido valorizar o nosso processo de olhar suficientemente para poder, publicamente, dar nome a esse olhar (p. 500).

Como não há identificação das mulheres negras com o que há na tela – o olhar falocêntrico e a construção das mulheres brancas –, essas mulheres elaboraram uma teoria de relações com o olhar nas quais o prazer da interrogação é o prazer do cinema. Para o desenvolvimento do olhar oposicional, bell hooks aponta que há uma relação direta entre ele a as mulheres que construíram suas identidades na resistência, com práticas ativas contra o status quo.

Filmes produzidos por mulheres negras que começaram a ser acessíveis contribuíram para se discutir sobre as mulheres negras como espectadoras. Entretanto, ainda há muitas mulheres negras que não enxergam a partir do local de rompimento porque sua realidade está profundamente colonizada, construída pelos saberes dominantes: “A condição de espectadoras críticas das mulheres negras como local de resistência apenas quando essas mulheres, individualmente, resistem à imposição das formas dominantes do olhar e do saber” (p. 504).

A construção da resistência no olhar oposicional não é apenas relacionada à reação, há toda uma verdadeira criação em diversos níveis de construção, as mulheres negras fazem muito mais do que reagir, um exemplo é a ocupação nos papéis de produção cinematográfica, como direção, roteiro, arte, fotografia, dentre outros. Portanto, o cinema é um local poderoso para uma intervenção crítica pelas mulheres negras, configurando a importância de ocupar os diversos meios de comunicação em massa.

Daughters of the Dust, de Julie Dash

A partir de filmes como Daughters of the Dust (Filhas do Pó), de Julie Dash, e The Passion of Remembrance, por Sankofa Film and Video, há nas representações de mulheres negras uma prática cinematográfica de desconstrução e que é alvo de críticas pelas pessoas brancas:

Evidentemente, o impacto do racismo e do sexismo sobredetermina de tal forma a condição de ser espectador/a – não apenas a maneira pela qual olhamos, mas também com quem nos identificamos – que espectadoras/es que não são mulheres negras acham difícil ter empatia com as personagens principais do filme. Ficam sem rumo quando não há uma presença branca no filme (p. 506).

The Passion of Remembrance, por Sankofa Film and Video

A representação, dessa forma, é fator importante para a constituição de novos tipos de sujeitos, para além de uma mera forma refletida no espelho. Esse texto de bell hooks contribui diretamente para a discussão sobre representatividade e representação e a importância de se criticar a partir de uma perspectiva interseccional. As mulheres negras e seu olhar oposicional constroem resistência ativa ao poder dominante e sabem a importância de ocupar os diversos espaços.

bell hooks

bell hooks

Referência:

Texto primeiramente escrito para o Programa de Pós-graduação em Literatura – PÓSLIT da Universidade de Brasília – Instituto de Letras

hooks, bell.  O olhar oposicional: espectadoras negras. In: BRANDÃO, Izabel; LIMA, Ana Cecília (orgs.). Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: Mulheres, 2017.

Por Risla Miranda

Brilha os olhos quando fala de direitos humanos e se vê um dia programando games. Discutir numa mesa de bar acompanhada de uma cerveja bem lupulada é o paraíso. Criatividade vai desde meme a criar estratégias de ação de projetos. Curtindo o rolê de contar histórias através de dados.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *