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Apenas o fim: quando ela resolve partir

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Apenas o fim, de Matheus Souza, narra a última hora do relacionamento entre dois jovens representados pelos atores Gregório Duvivier e Erika Mader. Eles relembram momentos do passado e as lembranças, apresentadas em flashback, revelam a intimidade construída do casal, o que faziam no tempo que passavam juntos, o entendimento sobre como é o relacionamento que compartilham.

Apenas o fim: Erika Mader e Gregório Duvivier

O filme é o primeiro longa-metragem de Matheus Souza e foi realizado nas dependências da sua universidade (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RIO). O filme foi recebido com surpresa pela crítica, ganhando, inclusive, os prêmios de Melhor Filme pelo Júri Popular nos festivais do Rio (2009) e na 32a Mostra de São Paulo. 

Apenas o fim, de Matheus Souza

Matheus é brasiliense (1988), mas se mudou para o Rio de Janeiro aos sete anos. Depois de Apenas o fim, Matheus já dirigiu outros quatro longas: Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida (2012), Tamo junto (2016), Ana e Vitória (2017) e Me Sinto Bem Com Você (2021). Além de outros trabalhos como roteirista, como Confissões de Adolescente, Intimidade entre Estranhos e Eduardo e Mônica.

Dê erre

Ele (Gregório Duvivier) – Antônio ou Tom – e ela (Erika Mader) – não conhecemos o seu nome no filme – vivem a última hora de seu relacionamento. Eles decidem passar esse tempo conversando, em uma “DR” – discussão da relação. O fim não tem um porquê, a não ser a urgência da juventude em viver e sofrer intensamente. A garota vai à faculdade para se despedir do namorado. Os dois estudam cinema. Ela afirma que está indo embora para sempre e que ele não a verá nunca mais. 

“Eu disse que tava cansada, né? Então, eu decidi fugir mesmo, vou sumir de tudo”, diz a jovem a Tom. 

É ela quem determina esse fim, é ela quem resolve partir. Com essa atitude, ela subverte o papel histórico dado às mulheres. Diferente de Penélope à espera de Ulisses. Penélope e Ulisses são separados quando este parte para a Guerra de Tróia. Penélope permanece fiel durante a longa ausência do marido, mesmo cortejada por inúmeros pretendentes.

Penélope, contudo, lançou mão de todos os artifícios para ganhar tempo, ainda esperançosa no regresso de Ulisses. Um desses artifícios foi o de alegar que estava empenhada em tecer uma tela para o dossel funerário de Laertes, pai de seu marido, comprometendo-se em fazer sua escolha entre os pretendentes quando a obra estivesse pronta. Durante o dia, trabalhava nela, mas, à noite, desfazia o trabalho feito. É a famosa tela de Penélope, que passou a ser uma expressão proverbial, para designar qualquer coisa que está sempre sendo feita mas que não se acaba de fazer (BULFINCH, 2002: 219).

Com as transformações da intimidade contemporânea, observamos narrativas nas quais é a mulher quem se ausenta. Em Apenas o fim, a protagonista propõe duas formas de passar esse momento final antes de sua partida: 

“ou a gente vai pro nosso lugar super secreto e transa até a hora da despedida ou, então, a gente pode passear e conversar”. 

Apesar de hesitar um pouco, Tom escolhe a segunda opção. A partir desses caminhos apontados pela namorada, podemos voltar ao conceito desenvolvido por Morin (2008) sobre a bipolaridade do amor: infame e sublime. São, de fato, essas duas alternativas indicadas pela garota – optar pelo amor-mito ou pelo amor-desejo. Tom, antes de responder, brinca: “podemos fazer as duas coisas?”, mas acaba por optar pela conversa. Há, no filme, outra referência à bipartição do entendimento do amor. Nas muitas conversas entre os dois, em umas das cenas em flashback, Tom pergunta: 

“o que você acha mais importante, amor ou sexo?”. Ela responde: “A primeira opção… Aliás, o que você falou primeiro?”. 

Como a frase termina em um questionamento, ficamos sem saber o que, de fato, a personagem coloca como prioridade.

Após a decisão de como passarão a última hora do relacionamento, os dois caminham pelo campus da universidade enquanto conversam. O filme é dos dois, foca nos dois, há apenas alguns poucos encontros com colegas de faculdade. Apenas o fim segue, assim, o estilo de produções como a trilogia do Antes de Richard Linklater: Antes do amanhecer (1995), Antes do pôr-do-sol (2004) e Antes da meia-noite (2013), nas quais os protagonistas Jesse (Ethal Hawke) e Celine (Julie Delpy) conversam, deslocam-se, instigam um ao outro, revelam e escondem seus sentimentos. Assim também é o casal de Apenas o fim. Entendemos que o relacionamento já existe há algum tempo, que os dois se conhecem e se gostam. Inclusive, falam sobre o amor que compartilham. Ainda no começo do filme, Tom insiste em saber os porquês da “fuga” da namorada. Após perguntar por quê, quando e para que lugar ela decidiu ir, ele questiona os seus sentimentos:

Ele: vem cá, você… Você ainda me ama?

Ela: Ai, falar sobre amor é muito clichê.

Ele: Eu não acho. Eu acho que falar que falar sobre amor é muito clichê é que é clichê, entendeu? Igual você fez. Ninguém mais fala sobre amor, todo mundo acha chato e clichê, justamente.

Ela: Eu sou todo mundo.

Ele: Quê?

Ela: Yo soy el mundo.

Tom tenta aprofundar a conversa em relação aos sentimentos dos dois, mas logo a namorada faz uma brincadeira, abandona a possibilidade de aprofundamento. Em outros momentos, a atitude inverte-se, como no momento em que ela pergunta o que Tom mais gosta nela. Ele faz uma brincadeira: “eu gosto do jeito que você toca flauta com o seu nariz, eu acho muito charmoso”. É ele, agora, que desvia o tom da conversa. Ela, então, expõe sua decepção: “você sempre perde a chance de ser romântico”. Mas, na verdade, ele acredita que era isso que ela queria escutar, porque é assim a relação dos dois jovens, cheia de sarcasmos que encobrem o que estão sentindo de fato. Eles apostam em uma relação despojada e desapegada. Há, porém, um momento de quebra desse distanciamento dos sentimentos, mas acontece quando os dois ficam sozinhos. Tom vai ao banheiro, ela o espera do lado de fora. Os dois, fisicamente separados, choram, expõem a verdadeira emoção do momento.

“Por que a ‘sensibilidade’ se transformou em dado momento em ‘pieguice’?” (BARTHES, 1994: 41). 

Para os jovens de Apenas o fim, a relação entre sensibilidade e pieguice é direta e, assim, o choro não pode ser compartilhado. 

Me faço chorar para provar que minha dor não é uma ilusão: as lágrimas são signos  e não expressões. Através das minhas lágrimas, conto uma história, produzo um mito da dor, e a partir de então me acomodo: posso viver com ela, porque, ao chorar, me ofereço um interlocutor empático que recolhe a mais ‘verdadeira’ das mensagens, a do meu corpo e não a da minha língua: ‘Que são as palavras? Uma lágrima diz muito mais (BARTHES, 1994: 42-43).

As lágrimas de Tom e de sua “futura ex-namorada” comunicam ao espectador mais sobre o sentimento dos dois do que muitos de seus diálogos. Estes, porém, têm a força de transmitir informações sobre a poética do amor contemporâneo jovem. Qual seria, nesse contexto, a definição do amor para esses jovens? Para ela, seria como “pedir pizza”, para ele, os sanduíches do McDonald’s seriam uma analogia mais apropriada.

Ela: Ah, mas eu acho o amor tão triste sabe, sei lá… É como pedir pizza. Você pede a pizza, fica ansioso pra pizza chegar, a pizza chega, você come, se empanturra e vai ver televisão no sofá.

(…)

Ele: Sabe o que eu tava pensando? Que uma história de amor tem muito mais a ver com McDonald’s do que com pizza. Pode rir, é que, sei lá, por mais que todo mundo fale muito mal de McDonald’s, que mata, que faz muito mal, muita gordura trans etc. e tal, eu não consigo parar de comer lá, sabe, eu tenho uma compulsão que é muito esquisita, ao mesmo tempo eu me sinto bem, me sinto melhor porque eu peço, sei lá, pra mudar alguma coisa no sanduíche, sei lá, pra tirar o picles, eu me sinto como se eu tivesse personalizando aquilo que é padronizado, sabe. Eu acho que com o amor é mais ou menos assim também, no sentido que pode ser uma coisa banalizada, por ser padronizada, pode ser igual pra todo mundo, mas pode ser único, personalizado, só seu, sabe. Eu acho que o nosso amor foi assim, foi meio que só nosso, foi tipo o número 1 só que sem picles.

Enquanto a garota, em sua comparação, ressalta a desintegração da força do desejo quando o amor é satisfeito – a expectativa pela chegada da pizza, a degustação e, em seguida, o seu esquecimento pela realização alcançada; Tom consegue, em sua analogia, perceber a poesia dentro da vida cotidiana – no símbolo da padronização (McDonald’s), destaca o que é único (especial para você) e valoriza o poder de sua escolha.

Intimidade em preto e branco

Em relação à construção e à estética de Apenas o fim, há um ponto que merece destaque neste filme íntimo. Em preto e branco, momentos passados do casal aparecem em pequenas cenas, alternadas com o tempo presente. As lembranças são todas ambientadas no quarto dos jovens – que aparecem vivendo a mais pura cotidianidade, mas, ao mesmo tempo, construindo e declarando o que consideram o amor jovem contemporâneo. 

Com o flashback, histórias passadas são retomadas. São 17 cenas, ou esquetes audiovisuais, nas quais os dois conversam, jogam, assistem a filmes, curtem o espaço da intimidade entre quatro paredes. Das 17 cenas, apenas uma apresenta Tom sozinho e outras duas mostram apenas a garota. As outras 14 pequenas cenas exibem os dois juntos, vivendo momentos da mais leve intimidade.

Em Apenas o fim há ainda a referência ao “cinema no cinema” (AUMONT e MARIE, 2003: 49), ou seja, um filme dentro do filme. No início da produção, os namorados comentam que está sendo gravado um filme na universidade, o que parece verossímil, já que eles cursam Cinema. Ela diz: “tão gravando um filme aqui hoje, sabia? O diretor é aquele teu amigo que eu sempre esqueço o nome”. No decorrer da narrativa, o casal passa por um pátio no qual o filme está sendo rodado. Inclusive, falam que o diretor é o Matheus, que é o nome do diretor de Apenas o fim. Tom senta-se ao lado dos atores, e criticam as referências usadas.

Percebe-se um efeito de espelho, já que o filme que está sendo rodado assemelha-se com a história vivida pelos dois protagonistas. Poderia ser um filme futuro de Tom, já que a namorada abandona o curso de cinema e afirma que tentará ser atriz. Em mais um diálogo da dupla, percebemos o indicativo dessa referência:

Ela: Vem cá, se tudo der certo pra você, você faz um filme sobre mim?

Ele: Ó, você sabe muito bem que não importa o que acontecer você vai estar em tudo que eu fizer, em todos os filmes, ou livros, ou peças, ou tardes e manhãs da minha vida, você… Eu nunca vou te esquecer. Eu te amo… Eu sei que você não gosta…

É interessante que, após os créditos finais, voltamos a ver aqueles dois atores, mas, naquela história, a mulher desiste de abandonar o namorado e eles têm o happy ending amoroso. Seria o final desejado pelo personagem abandonado pela amada, que re-constrói sua história ao torná-la ficção? 

Além do filme dentro do filme, os personagens apontam outra referência à recriação da vida na arte. Em um momento de “lavagem de roupa suja” entre o casal, além de dizer que odeia a mãe do quase ex-namorado, a garota ainda admite que odiou o roteiro de cinema que Tom escreveu, “parece uma peça de teatro filmada, nada acontece…”. E completa: 

“sabe o que eu achei o pior do roteiro, o pior de tudo, sério, é tão autobiográfico, sei lá… Tipo a protagonista, a protagonista é descaradamente inspirada em mim e adivinha? No final ela mata o mocinho, que é descaradamente inspirado em quem, em você”. 

Para Tom não há conflito entre vida/obra: “bom, a única diferença entre fazer arte e fazer terapia é que se eu deixo de escrever um dia eu não preciso pagar a sessão, entendeu?”. É interessante que, apesar de todas as referências entre vida e arte presentes no filme, no final de Apenas o fim, há a seguinte declaração: “Todas as histórias e personagens contidas neste filme são ficcionais. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência”.

* Texto retirado e atualizado da dissertação de mestrado  Cinema de Intimidade: proposta de gênero para o novo cinema brasileiro, de Lina Távora –  Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasília, DF.

Referências:

AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 12a Edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da Mitologia (a idade da fábula): História de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

MORIN, Edgar. Amor, Poesia, Sabedoria. 8a edição. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2008.

TÁVORA, LINA. Cinema de Intimidade: proposta de gênero para o novo cinema brasileiro. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasília, DF.

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

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