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Encanto e a pressão para agradar

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Encanto: Família Madrigal

(contém spoilers)

Encanto, o 60º longa de animação da Disney, foi produzido inteiramente de forma remota durante a pandemia de Covid 19. Escrito e dirigido por Charise Castro Smith, Jared Bush e Byron Howard, o longa foi a primeira animação do estúdio a ser lançada nos cinemas desde o início da pandemia.

E de fato é um filme que vale a pena ser visto na telona. Encanto é um filme esteticamente lindo, de cores vibrantes, figurinos incríveis, repleto de influências e traços latinos e com uma diversidade nunca antes vista nos filmes da Disney.

Com personagens de diversos tons de pele, cabelos cacheados e crespos, corpos de diferentes tamanhos e formatos, a animação chamou atenção por permitir uma identificação sem precedentes. Viralizaram vídeos na internet de crianças comemorando ao se sentirem representadas na tela, se identificando com o personagem Antônio, com Luisa ou com a protagonista Mirabel.

Além de ter cabelos cacheados e curtos, a protagonista de Encanto apresenta um corpo muito mais realista se comparada às demais protagonistas da Disney. Um processo iniciado há alguns anos com o lançamento de Valente e fortalecido com Moana. Apesar de ser magra, Mirabel não possui a magreza absurda de suas colegas de estúdio e tem uma cintura de diâmetro possível. Tem também o rosto arredondado, nariz não afilado e sobrancelhas grossas e escuras. Além disso tudo, Mirabel tornou-se a primeira protagonista feminina da Disney a usar óculos, o que foi muito celebrado.

Em 2019, Lowry May atingiu grande repercussão na internet ao compartilhar uma carta enviada para a Disney. Aos nove anos, ela questionou a inexistência de princesas do estúdio que usassem óculos, assim como ela. Lowry informou que sempre admirou as princesas dos filmes e as achou muito bonitas, mas por não se achar parecida com elas, não acreditava que fosse bonita o suficiente. Disse também que sempre que personagens usavam óculos eram chamados de nerds ou de outros apelidos e que isso não era justo. Por isso, pedia através da carta, que a Disney criasse uma princesa de óculos e que ela não fosse apelidada ou ridicularizada em função disso. 

Pouco tempo depois, o estúdio estreou Encanto e sua belíssima Mirabel, que usa óculos desde a infância. Atendeu aos pedidos não só de Lowry, mas de uma enorme parcela do público que sentia a mesma frustração.

História

Encanto: Alma e Pedro

O longa-metragem conta a história da família Madrigal, iniciada muitos anos antes, quando o casal Alma e Pedro vivia feliz e tinha acabado de ter trigêmeos. Perseguidos pela violência, eles são obrigados a abandonar sua aldeia, junto com muitos vizinhos, e a partir em busca de condições mais seguras para criar os filhos.

Quando Pedro é assassinado durante a imigração, Alma se vê sozinha, triste e desesperada com três bebês. Em seu momento mais sombrio, o universo lhe concede um milagre. Uma vela mágica surge para ela e cria uma cidade fantástica onde todos aqueles que fugiam podem viver em segurança. Cada um de seus filhos recebe um super poder e eles passam a morar em uma casa repleta de magia.

Encanto: casita

Os anos passam, os trigêmeos formam suas próprias famílias e seus filhos também recebem poderes. Todos menos a protagonista Mirabel. De forma inexplicável, ela é a única que não recebe um dom, o que a deixa frustrada e com a sensação de não se encaixar.

A cidade vive em harmonia por muitos anos e conta com a família Madrigal para ajudá-los a prosperar. Cada um tem funções específicas na comunidade de acordo com seus dons. Enquanto isso, Mirabel não tem dom nenhum e não se espera nada dela, apenas que não atrapalhe. Desesperada para ajudar, ela se desdobra para ser útil, se esforça para agradar, sempre  em busca da admiração da avó.

Após décadas de tranquilidade, a casa mágica em que vivem começa a apresentar rachaduras em sua estrutura, ameaçando desmoronar. Os poderes dos Madrigal vão ficando mais fracos, a magia vai dando sinais de estar desaparecendo e Mirabel sente que é sua responsabilidade salvar a todos.

Relações familiares e o peso das expectativas

No filme, as rachaduras na casa simbolizam as rupturas que também ocorrem nas estruturas dessa família. Enquanto tenta salvar a magia, Mirabel descobre que todos à sua volta (a quem ela atribuía vidas perfeitas pelo fato de terem poderes) estão sofrendo. Sua irmã do meio, Luisa, cujo poder é ser extremamente forte, revela que está esgotada, exausta de ter sempre que dar conta de tudo.

Em uma música excelente chamada Estou nervosa (1º reggaeton em um filme da Disney), ela fala sobre a pressão de ter que ser forte e sobre o preço disso para sua saúde mental. Espera-se que ela seja uma rocha e não há espaço para que demonstre vulnerabilidade. É criada uma expectativa de que quem é forte não pode chorar, desabar, descansar ou falar sobre seus sentimentos negativos – como se força e vulnerabilidade fossem opostos.

Luisa está a um passo do colapso, mas compreende que precisa continuar sendo forte e trabalhando sem parar para agradar a família e os amigos, mesmo com a ansiedade de não dar mais conta. Luisa acredita que seu valor está unicamente no trabalho e no fato de ser útil para os outros. Mesmo sobrecarregada, não consegue negar os pedidos, temendo não ser mais útil e assim perder seu valor. 

Em uma ótima comparação (na música em inglês), a personagem fala sobre um navio que não desvia, mesmo indo em direção a um iceberg que é imenso sob a superfície e sabendo que vai bater. A pressão está acabando com Luisa e mesmo assim ela não desvia, presa sob o peso das expectativas. É então que a magia começa a falhar e ela perde sua força.

Encanto: Luisa

Ao mesmo tempo, Isabela, a mais velha das três irmãs, passa por outro conflito interno. Vista por todos como a filha perfeita, tudo que faz é incrível e elogiado. Seu poder é criar flores e ela nunca cria nada que não seja absolutamente perfeito, sendo responsável por embelezar toda a cidade. Isabela está prestes a se casar com o rapaz mais bonito do povoado, o que é muito aguardado por todos, especialmente por sua avó.

Ela, no entanto, se sente aprisionada nesse papel. Sem permissão para ser espontânea, para errar, para se sujar, para se divertir sem se importar com a perfeição. Isabela não deseja se casar com Mariano, mas entende que é seu papel acatar os desejos da família sem discutir nem se rebelar. Ela acredita que não pode falhar e não pode desagradar os demais, por mais que isso a impeça de seguir as suas próprias vontades. Isabela vive sob a pressão de atender às expectativas alheias.

A pressão é tanta que, em uma explosão, ela produz sem querer um cacto. É a primeira planta que cria que não é simétrica e nem bela para os padrões, mas a seus olhos é lindíssima. Isabela entende, com a ajuda de Mirabel, o quão libertador é agir sem se preocupar com as opiniões dos outros, criar o que deseja, compor um jardim todo imperfeito, assimétrico e com cores bagunçadas. Ela aprende que existe beleza no imperfeito.

Luisa e Isabela sofrem com o peso das expectativas estabelecidas pela família e pela comunidade. Apesar de no filme isso ser simbolizado por seus poderes, é muito comum termos na vida real a pressão para nos encaixarmos em rótulos: a filha perfeita, a que é sempre responsável, a que nunca erra, a que é forte e aguenta tudo sem envergar. Encanto fala sobre família e sobre os perigos que muitas vezes as responsabilidades e expectativas criam para seus membros, especialmente quando falta comunicação.

Imigração e traumas transgeracionais

O momento de cura do filme acontece quando Mirabel e sua avó Alma se dispõe a olhar uma para a outra e a entender e respeitar as diferenças de suas gerações e de suas histórias.

Com muitas expectativas em relação a todos, Alma constantemente exige que os filhos e netos cumpram suas funções na comunidade, abrindo pouco espaço para falhas, dúvidas e receios. Considerada uma mulher rigorosa e até mesmo dura, ela traz nas costas o peso de muito sofrimento. Obrigada a abandonar sua casa e sua cidade, Alma perdeu o marido de uma forma extremamente traumática. Sozinha, vítima de violência, com três filhos pequenos, ela é a representação de tantos imigrantes que reconstruíram suas vidas e criaram suas famílias em um novo local.

Abuela Alma

No filme, esse novo lar é encantado e maravilhoso, mas na vida real sabemos que a situação dos imigrantes é longe de ser mágica e que o local que os recebe pode trazer muitas outras dificuldades e violências. A família Madrigal trabalha incansavelmente para a comunidade e exige-se que sejam sempre úteis, fortes e prestativos, sem que possam reclamar, se recusar ou parar para descansar. A realidade dessa família se assemelha de muitas formas a de tantos imigrantes que compõem a força de trabalho dos países para onde vão.

É possível compreender o medo de Alma de perder esse novo lar e o seu rigor para que todos da família cumpram seus papéis e mantenham essa estrutura que lhes foi dada como “milagre”. Assim, é muito fácil compreender o seu horror ao perceber rachaduras em sua casa e a magia acabando, ao ver a possibilidade de ter que ser obrigada novamente a abandonar o seu lugar, seus vizinhos e sua família. De ser retirada do local que passou a ser o seu lar e o lar dos seus.

Em entrevista ao Screen Rant, Charise Castro Smith, roteirista, co-diretora do filme e responsável pela criação da personagem abuela Alma, afirmou que se inspirou parcialmente na história de seus avós, que imigraram de Cuba para os Estados Unidos na década de 60. Além disso, a equipe conversou também com o Fundo Cultural Colombiano para investigar as dinâmicas de migração interna do país e com especialistas em psicologia familiar para entender como esse tipo de situação pode afetar não só a própria pessoa, mas toda a sua família. Todo esse trabalho foi necessário para criar uma personagem complexa, humana e redonda, além de compor sua relação com os filhos e netos.

“De várias maneiras, essa experiência realmente difícil e traumática que ela viveu repercutiu em sua família e formou muito da dinâmica que está acontecendo nos dias atuais”, informou Charise. “A partir de todo esse trabalho de base, realmente tentamos pensar na matriarca dessa família e, de várias maneiras, a prefeita desta cidade, a zeladora, a potência que está mantendo tudo junto. Nos perguntamos: qual é o custo disso? Que experiências ela viveu que tornam ainda mais desafiador fazer tudo o que ela tem que fazer?”

O diretor Jared Bush complementa: 

“Você realmente não conhece todas as lutas pelas quais eles passaram e você não sabe porque abuela Alma tem sido tão dura com seus três primeiros filhos. E isso se espalhou para as gerações posteriores. Bruno foi quem infelizmente sofreu com isso, como a pessoa que podia ver o futuro. Ele só viu as coisas negativas e para abuela Alma, que queria proteger sua família, ver a negatividade no horizonte era difícil. E esse trauma que escorreu de geração em geração também atingiu Mirabel. Bruno era um pária e Mirabel estava no mesmo caminho. A única diferença, na verdade, é que Mirabel é um tipo diferente de personagem, alguém que não cresceu com o mesmo tipo de expectativas, porque não se esperava nada dela como não-mágica. Esperava-se que ela decepcionasse as pessoas de certa forma. O fato de ela poder subverter isso, inclusive ser aquela que vem salvar a família e finalmente permitir que abuela fale sobre seu passado e a ajude a se curar, é algo de que estamos muito orgulhosos. E é algo que só Mirabel pode fazer”.

O momento em que avó e neta finalmente se abrem uma para a outra e conversam sobre essas dores, traumas e as consequências passadas de geração para geração é embalado pela música mais linda do filme. Escrita por Lin Manuel Miranda (assim como todas as outras sete canções originais de Encanto), Dos oruguitas está entre os pré- indicados ao Oscar de melhor canção original.

Durante essa conversa e ao som de Dos oruguitas, Mirabel e Alma são cercadas por borboletas amarelas (que já haviam aparecido no momento em que Alma e Pedro se conheceram). A inserção do animal no filme é uma homenagem ao escritor colombiano Gabriel García Márquez, que evidentemente influenciou os roteiristas de Encanto com seu realismo mágico. Assim como essa, existem várias outras referências e semelhanças entre os Madrigal e os Buendía, de Cem anos de solidão.

Cheio de influências latinas, marcado pela diversidade e nos incentivando a olhar com carinho para nossas próprias imperfeições e vulnerabilidades, Encanto mostra que não são necessários superpoderes nem incríveis habilidades de luta para nos salvarmos.

Sem par romântico, sem vilão e sem grandes aventuras para longe de casa (pelo contrário, de forma rara é uma jornada que se passa dentro da própria casa e da comunidade), Encanto nos ensina sobre a importância de nos comunicarmos e nos respeitarmos. Fala sobre a importância do autoconhecimento, de reconhecermos nossos próprios limites, de cuidarmos da nossa saúde mental e respeitarmos nossas vontades e trajetórias, atentas para os perigos das expectativas e das pressões alheias. Terminamos o filme com o desejo de um super poder muito especial: a habilidade do autocuidado.

Encanto: família e cura

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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