Categorias
Cartas para Elas

Carta para Moana | Cartas Para Elas

Compartilhe!
Moana com Te Ka

Moana,

Tenho sentido uns medos incontroláveis, irracionais, como os medos são. Um dia, pegando um voo de volta para casa, fechei os meus olhos e, para me acalmar, visualizei você, uma menina, no topo da montanha, fazendo o mar se partir em dois, encarando Te Ka com coragem e bondade, conseguindo encontrar no monstro de pedras e lavas a deusa da vida e da natureza, Te Fiti.

Coragem e bondade, juntamente com o respeito ao passado e a esperança no futuro, dão a você um novo conceito do que é ser guerreira. Uma guerreira conectada com a natureza, com o seu local, sua história e seus ancestrais. É nesta dualidade de coragem e bondade que quero pautar a minha vida!

No transe do meu medo, porém, fui para o fim de sua história. E que história! Uma que merece ser contada e recontada. Vista e revista. Como tenho feito, em companhia dos meus filhos, desde que seu filme foi lançado.

Você chega com uma imensa responsabilidade – ser mais uma princesa da Disney. Uma categoria, uma marca, que, para falar a verdade, me faz revirar os olhos. Não que eu negue que as últimas princesas tenham construído uma história interessante. E agora você tem um padrão mínimo a alcançar. Mas tudo o que é limitado em uma categoria, enquadrado em um conceito cheio de requisitos explícitos e implícitos, leva a estereótipos, em alguns dos quais você mesma cai.

Você, porém, chega tentando quebrar este conceito, afirmando-se apenas como a filha do chefe da aldeia. Embora o semideus Maui lembre que você tem todas as características esperadas para cumprir este estereótipo – você usa um vestido e tem um animalzinho como parceiro, logo, só pode ser uma princesa.

A conexão com sua avó a salva do que querem impor a você. Leva você a pensar em algo que nem você consegue ainda nomear. Que exemplo é essa mulher, não é? Uma mulher que traz uma liberdade que só se alcança quando se sabe e se aceita quem se é de verdade e por inteiro.

Ela mostra o poder que é ser livre para ser loucamente você mesma e, assim, ensina você a acreditar em si mesma. Ela traz a sua ancestralidade, desperta você do seu sono, cutuca os seus desejos, dança e aflora a sua espiritualidade, faz de você uma Mulher Selvagem, como ela. Adoro quando ela diz que ela é a mãe, que ela não tem que justificar nada para o seu pai, referindo-se às suas peripécias para ir além dos recifes. Tala é como a mulher-borboleta do mar, a mulher-arraia:

“Ela é A Borboleta que chegou para dar força aos fracos. Ela é o que a maioria considera não ser forte; a velhice, a borboleta, o feminino” (1).

Sinto falta, Moana, não vou mentir, de ver você interagir mais com sua a mãe, que aparece ali sempre ao lado do seu pai, mas sem expressar tanto as opiniões e ideias dela. Mas, confesso, que entendo essa parceria com as avós. Pais e mães estão ali na linha direta para educar e proteger os seus filhos. As avós trazem o amor desvinculado da “obrigação” de educar.

Não é na primeira tentativa que você consegue partir para a sua aventura, como nas narrativas de heróis – e heroínas – mais conhecidas. Afinal, não é apenas talento que queremos identificar e admirar nos nossos exemplos, mas resiliência e persistência. E você não decepciona, Moana. É no momento de maior dor, na despedida da sua avó, que você consegue encontrar as forças para partir na sua aventura – em busca da solução para a ilha de Motonui, para o re-equilíbrio da natureza ao seu redor, para se encontrar com o oceano (que sempre lhe chamou e lhe escolheu), para, enfim,  encontrar Maui, recuperar o coração de Te Fiti e fazer com que ele o entregue de volta para a deusa da natureza.

No barco, para sua surpresa, o desajeitado Heihei a acompanha. O oceano, porém, é o seu verdadeiro parceiro, dando a você uma forcinha nos momentos de desespero. Ele às vezes amedronta, revolta-se nas tempestades, mas também a leva a Maui e a Te fiti. E mais: traz a história de seu povo de volta. Um povo que tinha esquecido seus ancestrais, suas origens nômades e navegantes. Voltamos ao medo. A aldeia assimilou esse medo de “ir além” e o medo de olhar para o seu passado.  Esse medo compartilhado coletivamente estava adoecendo a sua comunidade inteira. Percebe, Moana, o poder que os medos têm de transformar vida em cinzas, como estava acontecendo com os frutos da sua aldeia?

Na sua aventura, há uma compreensão inicial que o que você precisa fazer é “apenas” encontrar Maui e convencê-lo a devolver o coração de Te Fiti. Mas imaginávamos que você poderia mais! E é isso o que acontece quando você mesma vira a mestre navegante. Sim, há uma ajudinha do convencido Maui, mas é você quem não desiste, é você que atravessa o monstro em chamas e é você, Moana, que consegue ver que a natureza sem seu coração virou um monstro. Um monstro revoltado, porque lhe roubaram o que tinha de mais puro. Voltamos, assim, ao início, que já era o fim. Você, com a sua bondade e coragem, ouviu o chamado de Te Ka e descobriu quem era na verdade.

Você, Moana, olhou Te Ka de frente, despiu-se dos seus medos, afastou a raiva que a encarava em chamas e, então, caminhou ao encontro da transformação: sua, do seu povo, de Maui e do monstro de lavas. Lembro do início da sua jornada – a despedida da sua avó – e de como você conseguiu apropriar-se dos conselhos dela, conseguiu transformar a perda em nascimento, abraçou os ciclos da vida-morte-vida.

Você fez como o conselho de Epicteto, quando ele diz: “Em vez de desviar os olhos dos acontecimentos dolorosos da vida, olhe para eles diretamente e contemple-os com frequência” (2).

Na sua trajetória, Moana, não há grandes inovações de narrativa. Mas trazer elementos já tão bem trabalhados nos caminhos percorridos por heróis, agora protagonizados por uma “princesa” da Disney – e ainda com um recado de respeito a quem somos de verdade – é tão válido! É por isso que carrego comigo o seu simbolismo.

Afinal, todos temos os nossos próprios recifes. Aqueles limites que a sociedade nos impõem e nos desafia a não atravessar. Aqueles caminhos que nos dão medo com a mesma intensidade que nos chama.

Mas nós vamos em frente, Moana, como você.


Moana: um mar de aventuras

Direção: Ron Clements e John Musker

Roteiro: Jared Bush

Sinopse: Uma jovem decide velejar através do Oceano Pacífico, com a ajuda de um semideus, em uma viagem que pode mudar a vida de todos.


Referência:

(1) ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Tradução: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro, Rocco, 2018. (1)

(2) Epicteto. A arte de viver: O manual clássico da virtude, felicidade e sabedoria. Epicteto; uma nova interpretação de Sharon Lebell; tradução de Maria Luiza Newlands da Silveira. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.

Última revisão: 29/09/2020

Leia mais: Cartas para elas

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

4 respostas em “Carta para Moana | Cartas Para Elas”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *