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Cartas para Elas

Carta para Margot | Entre o amor e a paixão (Take this waltz)

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Entre o amor e a paixão

Margot,

tudo ao seu redor é colorido, vivo e quente. E parece que é isso que você busca: calor e cor. Mesmo em um longo verão, ao cozinhar, você aproxima a sua cabeça do forno e ali repousa. O sol parece seguir você, tornando o seu rosto ruborizado. Internamente, porém, parece que você não está encontrando esse brilho, seu olhar é contido e até melancólico. Por que essa busca? Por que dentro de você falta esse calor? Me diga se estou fazendo conclusões rápidas e superficiais, me escreve e desfaz esses argumentos, porque nada em sua história me faz acreditar que é apenas sobre estar com um ou outro cara, e muito menos sobre o amor ou a paixão. Quero saber sobre você: dos seus interesses, dos seus desejos e das suas lacunas!

Você é escritora, mas sei muito pouco sobre o que você quer escrever. Só sei que não é sobre parques para panfletos institucionais. Quem também escrevia textos corporativos antes de escolher e de priorizar a sua arte era a Rosa, do filme Como nossos pais. A dramaturgia dela ficava na gaveta, sendo desenvolvida apenas quando achava um tempo livre que era cada vez mais escasso, até que um dia ela teve que dar atenção à protagonista (a do papel e a da sua vida real). Você já viu esse filme? Sempre encontro essas similaridades entre nós mulheres, nesse caso, a dificuldade em seguirmos nossa arte em nome do que “deve ser feito”.

Você subestima os seus desejos de escrita, mas agora não quer negar o desejo que surge pelo cara que mora ao lado. Você está casada com Lou há um tempo, conhece e se dá bem com a família dele, tem um afeto especial pela sobrinha e uma amizade sincera com sua cunhada, Geraldine. Como deve ter sido difícil decidir abandonar aquelas pessoas que para você eram também suas. Mesmo assim, sabendo das prováveis perdas, há uma falta que persiste e que faz você seguir um outro caminho. 

O que você sente? É mais sobre desejar ou sobre sentir-se desejada? Entende as entrelinhas da minha pergunta? O que você quer é sentir como é ser olhada pelos olhos novos de alguém ou é você quem olha e quem deseja? É uma ação passiva ou ativa, ou uma mistura dos dois? Ou esse desejo é só uma expressão de algo que você quer da sua vida? O que você mostra é que é frustrante “ter que seduzir” o seu marido. E que é excitante ouvir aquele estranho descrever como seria um encontro sexual entre vocês dois.

O desejo muitas vezes se apresenta a nós pelo desconhecido, pelo não-revelado. Mas é só isso ou tem mais? Acho que tem mais, Margot. Queria saber sobre você antes de casar com o Lou, o que você queria para você (para além de relacionamentos), como eram vocês no início e como foram surgindo todas aquelas brincadeiras íntimas compartilhadas. 

Em sua história você revela que não gosta de ficar no meio, em conexões, em espaços de dúvidas. Por que não viver um pouco no “entre”, viver um pouco as perguntas, como diria Rilke, antes de pular para buscar as respostas? É instável, sim, eu sei. Mas é no entre, nas falhas e nas quebras que nos descobrimos. Precisamos deixar o espaço aberto cicatrizar. Quem sabe até colocar luz nestas frestas, mergulhar ouro nas lacunas internas para deixar à mostra o que está faltando. Acredito, Margot, que devemos aceitar os nossos questionamentos e transformá-los exatamente no que nos faz ser únicas. 

Conhecemos a sua história a partir de uma viagem. Quando você conhece Daniel, há aquela instantânea e rara conexão entre estranhos (Hello, Stranger, como diria a personagem Alice em Closer). Na volta para casa vocês encontram-se no aeroporto e pegam o mesmo avião. 

O aeroporto é um símbolo do “entre lugares”, um meio para chegar ao destino desejado. Você sabia, Margot, que para o antropólogo Marc Augé, esse espaço do viajante é o arquétipo do não-lugar? Não-lugar seria um espaço que não pode ser definido nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico. É desse lugar que você teme. Não do voo, medo ao qual eu me identificaria, mas daquele espaço construído para ser transitório. Você teme se perder no entre-lugar. Você tem medo do medo que sentiria ao ser desviada do seu caminho.

Na volta para casa, o que poderia ter sido apenas uma lembrança, instala o seu caos interno quando você percebe que o estranho é seu novo vizinho. 

Daniel é um artista descolado, que faz a sua arte só por satisfação pessoal e que vive de trabalhos esporádicos. Os encontros de vocês dois acontecem com uma forcinha do acaso dada por vocês. Ou você realmente acordaria tão cedo, se arrumaria e sairia para resolver suas tarefas fora de casa se não fosse a chance de encontrá-lo? Agora, você quer essa possibilidade de escape.

O título bobo que recebe a versão do filme em português (Entre o amor e a paixão) traz verdades para você? Até onde a familiaridade e a intimidade conhecida sustentam ou acabam com a paixão? E a paixão só é possível com a cortina do desconhecido? Ou há um caminho que é o de entender os ciclos da vida, dos sentimentos e dos relacionamentos, aceitando e abraçando seus momentos de altos e baixos? Não se sinta pressionada, eu também não tenho as respostas, por isso estou aqui pensando junto com você. Estamos no entre!

A questão, Margot, é que tudo que é novo um dia fica velho, como alertam as mulheres no banho depois da aula de hidroginástica. Que momento, vale ressaltar. Corpos de mulheres nus, mas sem exploração ou sexualização, corpos que apenas existem, que não são objetos do desejo de um outro. Olha aí a questão do desejo/não desejo colocada mais uma vez! Você, Geraldine e Karen discutem a perda do “novo” ao ser casada. Do outro lado, outras três amigas: outros corpos e outra referência de entendimento do passar do tempo. Não falo em certo ou errado, mas apenas em diferentes vivências e de suas relações com o tempo. Como cantou Belchior na música Velha roupa colorida: “E o que há algum tempo era jovem novo | Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer…”. Você, Margot, mesmo ainda tão jovem, quer rejuvenescer… 

A questão é que tudo que é desconhecido, se você passar tempo suficiente, torna-se rotineiro. Eu também não sei como resolver esse paradoxo! E muito menos estou aqui para falar o que você deveria ou não ter feito. Só penso que temos que construir alternativas para preenchermos as nossas próprias lacunas – e é melhor que pensemos isso por e para nós mesmas, não para nos encaixarmos em um relacionamento. Sejam essas lacunas sobre interesse, desejo ou o desconhecido de forma mais ampla. É preciso compreender as nossas faltas. Afinal, escolhas significam perdas. Nessa jogada, haverá dor em algumas ou em todas as partes. Mas tudo bem também, escolhas/perdas fazem parte da vida; talvez aceitar isso seja libertador. 

Quando você escolhe encarar o seu desejo e ficar com Daniel, o nome original do filme fica claro, com a música Take this waltz, de Leonard Cohen. Com ela, vocês dançam e vivem tudo o que a nova relação permite, em um lapso temporal não determinado. Então, Margot, vou trazer para essa nossa conversa mais uma mulher, a Celine, da trilogia Antes do Amanhecer, do Pôr do Sol e da Meia-Noite. No segundo filme, Jesse e Celine também dançam uma valsa, mas só vamos saber se eles ficaram juntos ou não na última obra da trilogia. De toda forma, naquele momento eles – assim como vocês – escolhem os seus pares para uma dança.

No final, Margot, tenho a impressão que os entres já não assustam tanto. Você descobre que uma volta no brinquedo do parque de diversões pode ser dada sozinha, que a emoção e o entusiasmo podem ser os mesmos, ou até maiores. É você, Margot, quem escolhe com quem quer ficar. Lou está distraído no meio disso tudo, vivendo uma ideia ultrapassada do “foram felizes para sempre”. Daniel espera você. Ele quer, ele busca, ele fala; mas ele está ali esperando por você. Você escolhe, e talvez tenha enfim compreendido que o novo também envelhece, e aí entendemos que o início de sua narrativa era na verdade o fim, mas e daí? Você fez a sua caminhada, viveu a sua vida, fez as suas escolhas e admitiu as suas perdas. Foi a protagonista da sua vida, e é isso, no mínimo, que devemos buscar.

PS: Aceite os entres e faça as perguntas. Você vai ganhar com isso. 

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Entre o Amor e a Paixão (Take this waltz), escrito e dirigido por Sarah Polley

Margot: Michelle Williams

Lou: Seth Rogen

Daniel: Luke Kirby

Geraldine: Sarah Silverman

Este é o segundo longa-metragem de Sarah Polley. O primeiro, também de ficção, é Longe dela (2006) e o terceiro é o documentário Histórias que contamos (2012). Polley também é a showrunner e roteirista de Alias Grace, série adaptada do romance homônimo de Margaret Atwood. Como atriz, vale o destaque para os dois filmes dirigidos pela espanhola Isabel Coixet: Minha vida sem mim (2003) e A vida secreta das palavras (2005). 

Entre o amor e a paixão

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

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