Comumente vemos novelas sendo associadas à ideia de conteúdo audiovisual de baixa qualidade, com pouca criatividade e mensagens estereotipadas. Ainda mais criticadas são as novelas latinas, condensadas em um grupo homogêneo, tratado com preconceito e taxado de brega e de mau gosto.
É inegável, no entanto, que as novelas tem um alcance imenso, atingindo um enorme número de lares e de espectadores e, muitas vezes, gerando tópicos de assuntos a serem abordados. Suas histórias e seus personagens são motivo de conversa nas mesas de almoço, nas escolas, no trabalho e nos bares, e os nomes dos protagonistas aparecem com incrível popularidade nos registros de recém nascidos brasileiros. Elas possuem, por esse motivo, um potencial de transformação e de debate incrível, que é pouco explorado, tanto pelos próprios roteiristas e diretores que insistem em repetições de temas e de discursos hegemônicos, quanto pela crítica rasa e arrogante que insiste em ignorar suas individualidades e aprisioná-las em padrões sem se dar ao trabalho de analisá-las de verdade.
O universo das novelas latinas trabalha muito com adaptações e, mais recentemente, tem ganhado atenção da indústria audiovisual estadunidense, que viu nesse nicho a possibilidade de expansão para o formato de seriado. Betty, a feia foi uma telenovela colombiana lançada em 1999, que, em 2006, foi adaptada como seriado americano e como novela no México, teve uma versão polonesa, em 2008, e foi transformada em novela brasileira, em 2009. A história é focada em uma moça que não segue os padrões de beleza vigentes e que tenta uma vaga de assistente em uma revista de moda. Exposta ao universo das modelos e de padrões inalcançáveis, a personagem é considerada um peixe fora d’água e ridicularizada pela sua aparência. Após transformações estéticas, ela é finalmente aceita pelo grupo da editora e conquista o amor de seu chefe.
A versão norte-americana foi produzida por Salma Hayek e trabalhou com a mesma base, mas alterou algumas questões essenciais. Betty é uma jovem de origem latina nascida nos EUA e que vai trabalhar em uma editoria de moda. É ridicularizada por estar acima do peso e por usar roupas “diferentes” (como ponchos e outras peças que marcam sua origem mexicana). Com o passar do tempo, sua mudança é muito mais interna do que na aparência e a personagem se fortalece e cresce profissionalmente sem alterar seu peso e sem abandonar seus óculos (apesar de mudar, aos poucos, o guarda-roupa). Ela se envolve em vários relacionamentos ao longo das temporadas, sem que o foco esteja no amor romântico. O centro do seriado, na verdade, é a própria Betty e sua família. O pai idoso, que está ilegalmente nos EUA; a irmã mais velha, Hilda, que trabalha como cabeleireira e cria um filho adolescente; e o sobrinho Justin, que ama musicais, é um grande conhecedor de moda e ama o trabalho da tia. A série teve quatro temporadas e seu último episódio foi exibido em 2010.
Três anos depois de Betty, a feia foi lançada uma telenovela venezuelana com título de estrutura semelhante e que, coincidentemente, seguiu uma trajetória de adaptação similar. Joana, a virgem estreou em 2002 e contava a história de uma jovem que foi inseminada artificialmente devido a um equívoco médico, engravidando apesar de ser virgem. A premissa, apesar de parecer boba, chamou a atenção da emissora estadunidense The CW, que, desde 2014, realiza uma adaptação da história no formato de seriado. A série lançou a 4ª temporada recentemente e está disponível na Netflix.
A adaptação recebeu o nome de Jane, the Virgin e, partindo da premissa de uma jovem virgem grávida, sua relação com o pai biológico do bebê e todas as confusões que podem ser formadas a partir dessa aproximação, definiu-se como um seriado de personagens femininas fortes e diversos temas empoderadores.
Muitas vezes ridicularizada, justamente por sua similaridade com novelas latinas, a série é uma prova do preconceito cego que marca esse tipo de obra. Jane, assim como Betty, vem de uma família latina e, apesar de ter nascido nos Estados Unidos, não nega suas origens. Um fator que marca fortemente a sua família é a cultura da telenovela, que influencia esteticamente o seriado. Jane, sua mãe e sua avó amam assistir a novelas e, assim como os brasileiros, têm seu dia-a-dia influenciado por esses programas, na forma de agir, de encarar os relacionamentos e de lidar com situações diversas. Além disso, seu pai é um famoso ator de novela, o que traz os bastidores desses programas para mais perto da personagem principal e dos espectadores, adentrando as gravações e as intrigas por trás das câmeras.
Por ser a adaptação de uma telenovela e por tratar da vida de uma família latina, Jane, the Virgin trabalha de forma próxima com esse formato audiovisual. Esteticamente o seriado adota algumas características comuns em novelas, incluindo situações exageradamente cômicas ou tensas, a presença de um narrador e alguns efeitos especiais propositalmente “bregas”. Estes ocorrem quando somos transferidos para a imaginação de Jane. Muitas vezes, ela reflete sobre como agir em determinada situação e busca inspiração e coragem. Nessas ocasiões, ela imagina o que poderia acontecer ou visualiza alguém lhe dando conselhos. Em outros momentos, a imaginação de Jane é materializada na tela enquanto ela cria suas histórias, colocando em prática o sonho de se tornar escritora profissional.
Outro fator importante para a história de Jane é a religião. A igreja católica é muito marcante na cultura e nas famílias latinas e isso não é diferente na casa da personagem. Sua avó Alba é muito religiosa e criou a neta para seguir os preceitos católicos. Quando esta era criança, Alba a fez prometer guardar a virgindade até o casamento, usando a simbologia de uma flor que, ao ser esmagada e destruída, não pode nunca mais ser consertada.
Apesar de Jane ser uma jovem moderna, independente, acostumada à vida nos Estados Unidos que frequenta festas, bebe e namora, os conceitos dessa religiosidade estão emaranhados em sua criação e, por uma mistura de crença, culpa e medo de decepcionar a avó, a moça concorda em se manter virgem até o casamento.
Por isso mesmo, é uma grande surpresa quando, após um procedimento médico equivocado, ela descobre que está grávida. Diferente da versão venezuelana, o aborto é cogitado em Jane, the Virgin, mas a protagonista desiste dessa opção ao descobrir que o pai biológico do feto não pode ter outros filhos devido a um tratamento contra câncer.
A intenção então é ter o filho e entregá-lo para o pai biológico e sua esposa. Claro que diversas situações atrapalham essa decisão e colocam os personagens em incontáveis confusões, envolvendo relacionamentos, crimes e investigações policiais.
Além dessas aventuras bem humoradas, o principal foco da série é nos relacionamentos interpessoais e, em especial, entre as mulheres Villanueva. Jane mora com sua mãe, Xiomara, e sua avó materna, Alba. As três gerações de mulheres sempre moraram juntas e têm que lidar constantemente com suas diferenças. Alba está nos Estados Unidos há muitos anos, mas mantém fortes os traços de sua cultura venezuelana, como o idioma. É conservadora e muito religiosa. Xiomara já nasceu nos EUA e é professora de dança. Sonha em ser cantora e é um pouco irresponsável e imatura, o que contrasta muito com o jeito de sua mãe e sua filha. Jane é responsável, dedicada e viciada em listas de prós e contras. Pensa diversas vezes antes de agir, é extremamente madura e muito esforçada em sua trajetória profissional.
Apesar de muito diferentes, essas três mulheres se apoiam e estão presentes em todos os momentos importantes das vidas umas das outras. A série é basicamente sobre essa relação entre mulheres de diferentes idades, estilos e culturas e como a rede de apoio que elas proporcionam permite que passem por qualquer situação.
Jane lida com a ausência de uma figura paterna e o seu descobrimento já na vida adulta; lida com as culpas e as exigências da maternidade; com a necessidade de balancear o lado materno e o lado individual; com a busca por identidade; com a luta por sucesso profissional e diversas dificuldades interpessoais. É a segurança de sua rede de apoio que permite maturidade e força para seguir adiante, amparada por outras duas mulheres resistentes que já passaram por situações semelhantes e que, mesmo quando discordam, respeitam suas decisões, seus medos e incertezas. O seriado é marcado por diversas cenas e diálogos belíssimos de sororidade, empatia e respeito.
Às vezes mal compreendida por quem direciona um olhar superficial, a série trabalha de forma leve e bem humorada (com algumas poucas exceções de extrema seriedade e doses fortes de drama) questões importantes sobre o que é ser mulher no mundo atual, o que a maternidade altera em nossas vidas e a importância de não se trilhar esses caminhos sozinha.
3 respostas em “Latinidade, sororidade e empoderamento em Jane, the Virgin”
[…] seriado Jane, the virgin, a personagem Petra tem um excelente desenvolvimento. Inicialmente apresentada como vilã novelesca […]
[…] Em 1990, a história foi adaptada para série de tv e contou com 13 episódios. Em 1995, foi a vez de se tornar longa-metragem, com roteiro de Dalene Young e direção deMelanie Mayron (que também é atriz, quem lembra dela como professora/mentora de escrita da protagonista na série Jane, the virgin?). […]
[…] mulheres Villanueva são muito diferentes entre si e, mesmo assim, são conectadas por sentimentos intensos. A […]