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La casa de papel: o matriarcado não começou

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Mulheres em La casa de papel

{Contém spoilers}

La casa de papel chegou à sua quarta temporada com melhorias em relação à anterior, voltando a empolgar os espectadores após uma terceira temporada morna. Mantém, no entanto, um enorme problema que carrega desde o início: a construção problemática de personagens femininas.

A série é conhecida pela genialidade do líder dos assaltantes, chamado de Professor. Sua capacidade de prever os passos da polícia e se antecipar a eles, fazendo jogadas arriscadas que sempre os livram dos perigos (por mais absurdas que pareçam algumas situações). Com o passar do tempo, muitos pontos dos planos vão ruindo à medida que falhas humanas vão se acumulando. Falhas motivadas especialmente por raiva, medo ou a dor de perder uma pessoa amada.

A intenção foi criar um grupo inteligente, cheio de super talentos (afinal, não é qualquer um que consegue realizar cirurgias sem estudar medicina, desarmar bombas, fundir ouro etc.), mas também repleto de carisma e de defeitos facilmente identificáveis, para que o espectador se aproxime de alguns deles, mesmo em uma situação tão distante da realidade da maioria, como a de um grande assalto de repercussão internacional.

Lisboa e Estocolmo

Raquel La casa de papel

O problema é que é difícil se identificar com a maioria das personagens mulheres  quando elas são mal construídas e acumulam dezenas de decisões absurdas. Na primeira temporada, por exemplo, Raquel e Mônica tomaram a decisão tremendamente questionável de se unir aos assaltantes. Ambas pelo mesmo motivo: o amor.

Raquel era a inspetora responsável pelo caso. Enfrentava o líder do assalto, Professor, com inteligência e estrategismo. Não contava com o fato de que ele entraria em sua vida, inicialmente fingindo se tratar de outra pessoa (afinal, a identidade do orquestrador do assalto era envolta em mistério). Assim, ambos se apaixonaram e precisaram decidir a quem seriam fiéis.

O Professor claramente escolheu seu próprio lado, mantendo-se leal ao plano e a seus pupilos assaltantes. Não abriu mão de nada por Raquel. Ela, por outro lado, largou a sua carreira, a vida que havia construído até então, arriscando-se a pegar muitos anos de prisão e a ser separada de sua filha pequena e de sua mãe com Alzheimer, ambas precisando dela. Uma mulher que até dias atrás era servidora do governo, trabalhando pela segurança pública, com certa estabilidade, segurança, status e código de ética, e que abre mão não só disso, como também das pessoas que mais ama, para ir atrás de um assaltante que conhece há pouquíssimo tempo. Assim, Raquel torna-se Lisboa.

Ela passa a ficar sob a sombra do Professor e todas as suas qualidades do início são ofuscadas. Apesar de ela ter trabalhado durante anos no alto escalão da polícia, com acesso a planos, protocolos e muito conhecimento específico, praticamente nada disso é utilizado nos planos. Lisboa passa a ser apenas uma ouvinte passiva, a quem o Professor conta suas estratégias sem espaço para críticas e conselhos. O que poderia ser uma dupla de gênios passa a ser um gênio e seu par romântico.

Raquel inspetora em La casa de papel

Mônica, de forma similar, foi refém no primeiro assalto e abandonou a sua vida para se juntar aos seus sequestradores. Durante o assalto à Casa da Moeda, ela se apaixona por um dos sequestradores, que lhe dedica especial atenção e que conversa com ela em meio ao clima de tensão. O ponto alto da paquera: ele atira na perna dela. E depois cuida do ferimento com muito carinho e dedicação. “Romântico”… 

Monica La casa de papel

Apaixonada por ele e decidida a abandonar sua família, emprego, liberdade e segurança (sua e do filho que espera), Mônica torna-se Estocolmo. Apelido propício, mas que careceu de uma crítica que o acompanhasse.

Tóquio e Nairóbi

Assim, o time inicial passa a contar com duas novas integrantes. Duas mulheres que optaram por se tornar foras da lei para acompanhar os homens por quem se apaixonaram. Junto com elas estão Tóquio e Nairóbi, participantes do grupo desde o primeiro assalto.

Tóquio é conhecida por sua impetuosidade e imprevisibilidade. Mais de uma vez põe o plano em risco por não conseguir controlar seu temperamento. Ela é definida como uma bomba relógio e poderia passar de corajosa líder do grupo para responsável por botar tudo a perder em questão de minutos.

Cabe destacar que personagens masculinos também cometem erros na série, por medo, burrice ou egoísmo. Mas o temperamento é uma das marcas conhecidas de Tóquio, além de ser constantemente relacionado a uma sexualidade latente. Ela chega a ser comparada por Denver a um Masserati, um carrão potente que nem todos conseguem dirigir (não vamos nem falar quão ridículo é comparar mulheres a carros). Uma personagem descontrolada, raivosa, construída para atiçar os personagens masculinos com seu estilo “furacão”.

Tóquio La casa de papel

Prova disso é a conversa sobre sexo com seu sequestrador na quarta temporada. Gandía é o chefe da segurança e foi feito refém durante o assalto. Ele consegue se soltar e, de forma fria e doentia, trata seus inimigos como presas em um jogo, como se estivesse se divertindo. Ao prender Tóquio, ele a ameaça constantemente com a possibilidade de estupro, o que deixa sempre um clima de perigo e angústia enquanto estão ambos trancados sozinhos na sala do pânico.

De repente, de vítima enojada com seu comportamento, se retraindo para se proteger, ela passa a conversar sobre sexo com ele. Estimulando, pedindo para que eles transem, fazendo um jogo de sedução, que não deixa claro qual é a sua intenção. Afinal, não é assim que ela consegue se soltar e não é assim que consegue enganá-lo. Foi apenas uma sedução descontextualizada e completamente de mau gosto, uma vez que envolvia risco de estupro.

Então junto com duas personagens que tomam decisões completamente inverossímeis para suas vidas (o que torna completamente difícil se colocar no lugar delas e entender suas escolhas), a série constrói uma personagem hiperssexualizada, descontrolada e temperamental, que reforça diversos estereótipos femininos.

Não é por menos que uma das personagens preferidas do público é Nairóbi. Em comparação com as demais, ela é equilibrada, forte, bem humorada e conhecida por uma das falas mais impactantes da série. Na segunda temporada, ela tomou o poder dentro do banco, destituiu Berlim, assumiu o papel de líder e declarou: “Que comece o matriarcado!”. Infelizmente, o feminismo pregado pela série é completamente frágil e mal construído. Ao mesmo tempo em que colocaram uma frase como essa, fizeram com que Nairóbi se sentisse extremamente pressionada e devolvesse o poder para Berlim nas horas seguintes.

A mesma personagem, inclusive, sabe que Berlim está assediando Ariadna, uma das reféns, e ao invés de lutar para tirá-la de perto dele e evitar que ocorram estupros em um sequestro do qual ela é responsável, deixou a moça para trás com seu assediador.

A frase “Empieza el matriarcado!” arrancou aplausos, virou estampa de camisetas e passou a ser usada por alguns como símbolo de feminismo. No entanto, é vazia. Foi dita no contexto de um assalto liderado por um homem que no início ridicularizava e hiperssexualizava a inspetora do caso e que não aceita dividir o protagonismo com uma mulher (vale lembrar que ele trabalhou junto com Berlim e Palermo no desenvolvimento de alguns planos).

Nairóbi Começa o matriarcado

Um assalto que mostra uma mulher assumindo papel de liderança e desistindo pouco depois por não aguentar a pressão. Que mostra mulheres abrindo mão de suas vidas (tanto em relação a liberdade e segurança, quanto em relação ao protagonismo) por seus pares românticos. No contexto de um assalto que fez reféns e que culminou no estupro de algumas mulheres. Pois não podemos esquecer que, além de Berlim ter estuprado uma refém e do chefe da segurança, Gandía, ter ameaçado Tóquio, Arturo dopou e violentou uma colega refém. Ou seja, existem estupradores dentre os sequestradores, dentre os reféns e dentre os seguranças. Tudo isso sob a vigilância de assaltantes que são vistos como heróis pela população.

Nairóbi

Com um time formado tanto por homens quanto por mulheres, fica claro qual é o elo mais fraco na concepção dos roteiristas. Em determinado momento da quarta temporada, das quatro assaltantes mulheres, três estão nas mãos dos inimigos, devendo ser resgatadas por seus amigos/companheiros. Não há nada que exigisse que fossem essas especificamente as personagens capturadas, podendo facilmente ter sido trocadas pelos homens no contexto de rendição. Isso mostra claramente a forma como os criadores do programa encaram a questão de gênero.

Alicia Sierra

Alicia Sierra

É possível que a melhor personagem da quarta temporada seja a antagonista Alicia Sierra, investigadora que assumiu o lugar de Raquel. Ela é fria, forte, calculista e aparentemente sem sentimentos. Tortura sem se importar com as regras, com a repercussão e muito menos com direitos humanos. É fácil odiá-la e temê-la. É implacável e não aceita ser diminuída por ninguém, nem por seus superiores, nem por sua própria corporação. Então quando a polícia tenta descartá-la, ela dá seu golpe primeiro, sacaneia a polícia sem dúvidas e sem remorso.

Tudo isso com um enorme barrigão de grávida, quebrando qualquer estereótipo sobre maternidade e sobre o típico comportamento que se espera de mães. No fim das contas, é ela que faz todo o serviço que a polícia não conseguiu fazer e encontra o Professor sozinha.

Isso tudo seria ótimo, se a série não tivesse criado uma cena completamente desnecessária em que ela abre seu coração para Raquel e conta que seu marido faleceu recentemente, mostrando-se vulnerável e esclarecendo que toda a dedicação e foco que direciona para a investigação são resultados da solidão e da vontade de não voltar para casa para não ter que encarar a ausência do marido.

Então mesmo a vilã fria e torturadora recebeu o que deve ter sido considerado um fator “humanizador”. Mas que na verdade foi a necessidade de apoiar seu arco dramático, sua trajetória e suas motivações em um homem. Um homem completamente aleatório, que nunca vimos e que nem é personagem da série. Mas aparentemente é necessário para construir uma personagem mulher…

Claro que a série tem seus méritos, mas não faz sentido ficar conhecida por ser feminista quando apresenta tantos fatores que vão intensamente no sentido contrário. O matriarcado não começou, e mais: está completamente distante de La casa de papel.

Nairobi

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

2 respostas em “La casa de papel: o matriarcado não começou”

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