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Maid: sem atalhos mágicos nem tábua de salvação

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A série Maid acompanha a história da protagonista Alex, a partir do momento em que ela sai da casa onde vivia com o marido, em situação de violência doméstica. A partir daí, ela tenta se estabilizar financeiramente (e psicologicamente) e criar sozinha a filha de três anos. Apesar de ser uma série pesada, proporciona algumas reflexões e debates necessários. Mais do que apresentar uma protagonista em situação de violência doméstica, o seriado aborda algumas das complexidades dos relacionamentos abusivos, da violência e dos desequilíbrios de poder nas relações.

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(Contém spoilers)

Com dez episódios, a série Maid estreou na Netflix em 2021, baseada no livro autobiográfico Superação: trabalho duro, salário baixo e o dever de uma mãe solo, de Stephanie Land.

A série acompanha a história da protagonista Alex, a partir do momento em que ela sai da casa onde vivia com o marido, em situação de violência doméstica. A partir daí, ela tenta se estabilizar financeiramente (e psicologicamente) e criar sozinha a filha de três anos. 

Alex foge durante a madrugada levando pouquíssimos pertences e sem avisar a ninguém, temendo por si e pela filha Maddy. Como é comum em muitos relacionamentos abusivos, seu marido controlava as finanças da família, o que mantinha a esposa em uma situação de perpétua dependência. Por esse motivo, além de lidar com todos os medos e traumas do relacionamento violento, Alex se vê isolada, sem moradia e sem recursos, carente de todos os itens básicos para sua sobrevivência.

Buscando assistência do governo, ela se depara com infinitas burocracias. Para conseguir abrigo, precisa apresentar um contracheque. Para conseguir emprego, precisa arranjar uma creche para a filha. Para obter uma vaga na creche, precisa de um comprovante de moradia. Em uma burocracia cíclica e que parece não ter sido criada para ajudar, Alex se desespera. E nós nos desesperamos junto com ela.

Maid é uma série difícil de assistir. Ao fim de cada episódio, o espectador se sente frustrado e exasperado. As dificuldades enfrentadas por Alex vão se acumulando e entendemos o quão difícil é conseguir prosperar diante de um cenário que só a puxa para baixo.

Para aliviar um pouco a experiência, a série conta com recursos narrativos criativos que nos permitem entrar nos pensamentos, sentimentos e fantasias de Alex, brincando com as imagens e sons para fugir temporariamente do peso da realidade.

A série foi criada por Molly Smith Metzler e dirigida por John Wells, Helen Shaver, Nzingha Stewart, Lila Neugebauer e Quyen Tran.

 

16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres

Apesar de ser uma série pesada, Maid proporciona algumas reflexões e debates necessários. Infelizmente, a violência contra mulheres envolve muitos tabus e estereótipos, sendo um debate ainda marcado por desinformação e muito julgamento.

Tentando mudar essa situação, em 1991 foi estabelecida uma estratégia anual de mobilização e engajamento para prevenir e tentar eliminar a violência contra mulheres e meninas. Todos os anos, o período de 20 de novembro a 10 de dezembro é marcado no Brasil por uma campanha de 16 dias de ações para conscientização da temática, envolvendo debates, manifestações e produção de conteúdo.

Nesse sentido, o Arte Aberta acredita que a série Maid pode ser uma boa indicação para trabalhar alguns temas pertinentes à questão. Mais do que apresentar uma protagonista em situação de violência doméstica, o seriado aborda algumas das complexidades que envolvem os relacionamentos abusivos.

Durante algum tempo, Alex e Maddy moram em um abrigo para vítimas de violência doméstica. E é difícil para a protagonista se compreender dessa forma. Em uma conversa com a assistente social, ela demonstra relutância em entender as ameaças, o controle, os gritos, os objetos quebrados e o constante sentimento de perigo como violência. Ensinada a acreditar que agressão é apenas aquela que deixa marcas na pele, Alex acha que não tem o direito de morar no abrigo, pois não foi “agredida de verdade”.

“Agressão de verdade… o que isso quer dizer?”, provoca a funcionária, “o que seria agressão de mentirinha? Intimidação? Ameaças? Controle?”. Compreender que foi agredida e que merece proteção é um processo para Alex, assim como compreender que sair daquela relação não foi um exagero, que ela não tem obrigação de tentar entender o ex e nem de lhe dar mais chances. E junto com ela, ao longo dos episódios, os espectadores têm a oportunidade de repensar o que compreendem como violência e como relacionamento abusivo, para muito além de casos de espancamento.

É possível também revisitar outros conceitos e estereótipos que tendem a marcar o imaginário das pessoas a respeito de vítimas de violência doméstica. No abrigo, Alex tem contato com muitas mulheres que passam por situações similares às suas, em momentos diversos do processo. E fica chocada ao descobrir que uma amiga reatou com seu abusador. Ao conversar sobre isso com a dona do estabelecimento, ela inicia um outro processo, o de tentar se desprender do julgamento que essa “recaída” gera.

Por mais difícil que seja compreender o motivo de alguém voltar com um abusador, Alex aprende que existem muitas camadas e fases em um relacionamento abusivo. E ela própria, que tanto se chocou com a amiga, descobre da maneira mais difícil como o abuso pode ser traiçoeiro e cheio de armadilhas.

Em meio a tantas dificuldades e quando cada dia parece ser mais impossível do que o anterior, Sean, seu ex, reaparece aparentemente transformado. Sem beber, calmo, companheiro, apaixonado, pai carinhoso, com uma casa e comida na geladeira (necessidades básicas que ela batalha diariamente para garantir, muitas vezes sem sucesso). Extremamente solitária e sem poder contar com ninguém, Alex vê no relacionamento a possibilidade de uma trégua daquele desespero diário. Ao menos uma garantia de ter onde morar e o que comer, proporcionando à filha uma infância minimamente estável.

Acompanhar a jornada de Alex e se sentir esgotado junto com ela a cada nova dificuldade pode ajudar o espectador a reconhecer algumas dessas complexidades. E por mais que não torne mais fácil acompanhar a “recaída” da protagonista, ao menos a humaniza e nos ajuda a entender que nada é preto no branco.

Após tantos problemas, o que o espectador mais deseja é que Alex encontre uma possibilidade de ser feliz. E isso é vislumbrado na forma de um conhecido gentil e bonito que claramente está interessado nela. Nate é um antigo colega de trabalho que reencontra Alex e está sempre disposto a lhe oferecer ajuda. Doce e tranquilo, ele parece uma maravilhosa tábua de salvação. Com um filho da idade de Maddy, ele proporciona ótimos passeios e momentos agradáveis, em que é possível imaginar um futuro feliz e uma nova família, saudável e bem estruturada.

Além das borboletas no estômago, do sonho de um futuro tão promissor e do afago na auto estima (tão machucada no relacionamento anterior), Nate simboliza o fim das dificuldades econômicas (com casa no subúrbio, acesso a boas escolas, carros e possibilidade de lazer). Deixando a hipocrisia de lado, estabilidade financeira é o que todo mundo está desejando para Alex após tantas privações. Ainda mais quando vem em um pacote tão incrível.

Apesar disso, Alex fica relutante em permitir as aproximações de Nate. Ela entende que há  um claro desequilíbrio de poder entre eles e fica temerosa de que o sexo ou qualquer tipo de envolvimento se vincule à ajuda que ele pode proporcionar. Sua mãe não entende a relutância (e é fácil de imaginar que muitos espectadores também não) e aconselha a filha a unir o útil ao agradável e ficar com o amigo. Mas Alex entende que está em uma posição muito delicada e teme perder a liberdade de escolha (sobre quando, de que modo, e se quer se envolver com aquele homem).

O papel de Nate nesse momento está vinculado ao bem estar e a sobrevivência de Alex e Maddy e a protagonista se preocupa que isso a distancie da gentileza de um amigo e crie limites confusos na relação dos dois, gerando expectativas e “obrigações” que lhe privem de autonomia. Em determinado momento, ela conversa abertamente com Nate sobre isso e diz “você é a única coisa que separa a possibilidade de ter um teto sobre as nossas cabeças hoje da possibilidade de eu e Maddy estarmos morando na rua”.

Mesmo após ouvir essa fala tão forte e de entender a importância da sua ajuda para Alex e a filha, Nate comprova que os receios da protagonista eram muito válidos. Até então compreensivo com o fato do relacionamento dos dois não avançar para a esfera romântica, ele se revolta quando descobre que Alex transou com Sean e expulsa mãe e filha de sua casa, sabendo que elas provavelmente dormirão na rua.

Isso demonstra que Nate aceitava o fato de Alex não ficar com ele (pelo menos até o momento), desde que significasse que ela também não ficaria com ninguém. Mas qualquer tipo de ajuda ou convivência tornou-se inviável quando ela se envolveu com outra pessoa. Ele se sente ludibriado e usado, deixando evidente que em algum momento a ajuda tornou-se vinculada ao recebimento de amor.

Os gestos que se diziam gentilezas sem intenções revelaram que tinham um preço (ou pelo menos uma expectativa) e aquela relação com tanto desequilíbrio de poder provavelmente evoluiria para um controle gradual de Alex por Nate.

 

Pelo que é mostrado na série, é possível compreender que as ajudas oferecidas não tinham essas segundas intenções de forma consciente, em que a moradia seria paga com sexo e a recusa automaticamente geraria expulsão. Nate é de fato desenvolvido como um homem bom e gentil. Mas essa relação desequilibrada entre eles é mais um dos aspectos complexos que envolvem a jornada de uma mulher em situação de extrema vulnerabilidade financeira. É muito difícil que uma relação em que uma pessoa dependa da outra em níveis tão básicos não envolva controle.

Sendo apenas hóspede de Nate, Alex foi punida com a perda de moradia quando ele se sentiu frustrado. Quanta liberdade ela teria para se posicionar e para confrontá-lo se estivessem em um relacionamento romântico? Como poderiam se relacionar de igual para igual se qualquer embate poderia envolver a ameaça de morar na rua e passar fome?

Apesar desses acontecimentos levarem Alex novamente para uma situação desesperadora, é importante que a narrativa não tenha optado por usar Nate como tábua de salvação. Mesmo sendo muito diferente do relacionamento com Sean, essa nova relação manteria Alex em uma situação perigosamente desprivilegiada, cerceando de muitas formas a sua autonomia.

O final escolhido, apesar de prometer muitas outras dificuldades, nos dá a esperança de um futuro promissor. E mais do que tudo, nos mostra uma Alex que se fortalece e que cria bases sólidas e estáveis para si e para sua filha. Após sair novamente de uma situação sombria e paralisante, a protagonista corre atrás de um sonho antigo. Mais uma vez ela batalha com as burocracias do governo e consegue auxílios e bolsas para cursar a faculdade.

Com o dinheiro do trabalho de faxineira, a conquista do curso de Literatura e a compreensão de que só pode ajudar a mãe até onde ela permitir, Alex parte rumo a uma nova cidade, cada vez mais focada em si. Já sabemos o suficiente para entender que esse novo caminho não será fácil, sem mágicas nem tábua de salvação. Mas vemos também uma protagonista muito mais segura, cada vez mais forte e batalhando por sua independência.

Assistir à série Maid é emocionalmente desgastante, isso é impossível de negar, mas também proporciona importantes reflexões sobre as complexidades dos relacionamentos abusivos, da violência doméstica e dos desequilíbrios de poder nas relações, permitindo que os espectadores repensem seus próprios preconceitos e atitudes.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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