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Para além dos seios | Crítica

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O corpo é meu:

Um relato de experiência ao assistir ao filme Para além dos seios

O filme Para além dos seios, dirigido por Adriano Big, teve pré-estreia em Brasília no domingo, dia 4 de dezembro. A capa do filme já nos chama para questionar a imediata ligação entre os seios e a sexualização. Um pequeno relato do diretor antes de sessão indica que o filme foi realizado de forma independente.

A sessão começa, luzes se apagam e já se tem um discurso sobre o que é o Estado. Diz-se que o povo é a centralidade do Estado e é dele que emana todo o poder. Então, com cena da Marcha das Vadias, em Salvador, gritos de ordem, seios de fora, cartazes clamando por liberdade e respeito, percebo que o filme é sobre a mulher, sobre ter seios ou não tê-los, sobre a identificação do que é ser mulher e o do que os seios significam para a construção de gênero.

Há depoimentos de mulheres cis e trans, homem trans, homem cis cego, mulheres negras e brancas de todas as formas que questionam o referencial padrão de sensualidade e do que é ser mulher.

O homem cego contrapõe o que dizem sobre a infelicidade de perder a visão com o fato de não precisar mais estar em uma sociedade imagética e consumista, que utiliza das imagens para tornar o corpo das mulheres em um produto.

As discussões envolvem o constante viver nesse espaço com corpos diferenciados que são decodificados em fragmentos. São vistos em pedaços, pela metade, sendo identificado por partes que servem para marcadores binários.

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E assim, com tantas marcações e inquietações de gênero, que é possível identificar na fala de uma mulher trans a associação com o feminino. Ela, na adolescência, se considerava como homem cis hétero. E quem disse que à época ela estava errada? Será que precisamos tanto nos encaixar em padrões femininos e masculinos para nos considerar dentro de uma lógica binária? Ou isso ou aquilo?

A opressão aos corpos das mulheres começa já em tenra idade. É possível identificar essa opressão nos depoimentos de mulheres que aparecem em cena com um corte de tela em seus seios. Os seios falam? Ouve-se a voz dessas mulheres, falam de amigos dos pais que a olharam diferente quando começou a desenvolver os seios, falam de homens que não as olham nos olhos e sim para os seios, falam de primos, ainda crianças, que podiam brincar sem camisa, enquanto elas não podiam.

A sexualização começa desde cedo. Os corpos são proibidos e somos punidas por isso. Não se pode mostrar porque é feio ou porque é sensual demais, é a normatividade e objetificação enclausurando nossos corpos em padrões e tornando-os inferiores.

E então, uma atriz ao contar sobre o tratamento que fez de câncer de mama brada o “corpo é meu, quero mastectomia total para não ter mais câncer”. A médica alerta. Ela insiste. “O corpo é meu”. E então, ela pergunta, “em qual gênero vão me categorizar?”. Se não tem seios, se não pode depilar as axilas. Cadê meus marcadores de ser mulher? A sensação vem em mim. Percebo minha garganta apertando. Ela finaliza sua fala afirmando que foi tirado um elemento que a identifica como mulher, mas não foi retirada a sua potência e nem a sua sensualidade.

Há, portanto, muitas possibilidades de ser mulher. E é preciso conquistar essa liberdade, conquistar o espaço, é falar sobre abusos sofridos, é lutar contra a sexualização constante da mulher. É compreender a miscigenação no viés da violência contra a mulher, no embranquecimento da população.

Todo o jogo de câmera marcando lábios e seios falantes, simulando fragmentos de corpos, demonstrando temporalidade, casa com a fala e os depoimentos de todas as mulheres participantes do documentário. Percebe-se, pela construção da narrativa do filme, a importância do empoderamento do corpo. É, como uma mulher fala no filme, construir uma ideia de seios de dentro para fora, já que não nos reconhecemos no referencial, no padrão do consumo masculino.  

A fala de uma mulher negra que possui familiares indígenas ficou marcada. Ela diz “negar meu peito é negar minha cultura, a história”. Nosso corpo traz marcas, marcas estas que não devem ser identificadas a partir de um referencial de consumo. Daí é pensar que somos mais que formas, é existir conforme cada uma quer. É preciso superar o discurso religioso da culpa e da retirada de liberdade da mulher e seu corpo, é aprender a enxergar como somos e como queremos viver, é experienciar em uma sociedade livre da opressão capitalista e do patriarcado.

O filme deixa a emoção e traz à tona as relações de poder que estão ligadas ao trânsito do corpo das mulheres na sociedade brasileira. O poder do documentário é dar voz às mulheres que compreendem em sua rotina diária a perseguição que seus corpos sofrem. Percebo que há mulheres com diversos tipos de discursos, seja acadêmico, seja militante, seja de experiências rotineiras. É um processo de descobrir-se em uma sociedade que nos quer ver fragmentada, objetificada, tutelada.

Ao fim, sobrou o questionamento de o porquê não ter muitas mulheres na equipe de produção do filme. Isso, por si só, já evidencia diversas questões sobre o papel da mulher no cinema. Em um debate após a sessão, o diretor é questionado. Ele fala que ali foi um processo em conjunto com aquelas mulheres. Foi um processo de escuta e de se perceber como homem privilegiado. É genuíno imaginar que houve um processo de ressignificação por parte dele e da equipe técnica. Ainda assim, é sempre importante trazer questões de representatividade e do local de fala.

Apesar disso, Para Além dos Seios conta sobre descobertas de si mesmo. Espero eu, que essa descoberta e compreensão do Outro e a opressão que Ele sofre tenha sido, de fato, alcançada pela equipe técnica e por todos que assistiram ou vão assistir ao filme.

Por Risla Miranda

Brilha os olhos quando fala de direitos humanos e se vê um dia programando games. Discutir numa mesa de bar acompanhada de uma cerveja bem lupulada é o paraíso. Criatividade vai desde meme a criar estratégias de ação de projetos. Curtindo o rolê de contar histórias através de dados.

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