Categorias
Cartas para Elas

Carta para Silvia | O homem que copiava

Compartilhe!
Silvia (Leandra Leal) em O homem que copiava

Silvia,

Conhecemos a sua história e todo o desenrolar dos acontecimentos pelos olhos, binóculos, pensamentos e falas de André. A narrativa segue o fluxo da consciência dele. Ele fala da vida, de grana, de sonhos, de ilustrações e de leituras que faz enquanto opera a máquina de xérox na loja em que trabalha. Ele fala e pensa tanto que parece aquele cara do livro O apanhador no campo de centeio

É ele quem apresenta você. Primeiro de longe, pelo que ele vê de sua janela. É um conhecimento em fragmentos, como se ele fosse montando um quebra-cabeça da sua vida aos poucos. Ele constrói o “todo” do seu quarto a partir de pedaços que consegue ver pelos diferentes ângulos do espelho que você tem na porta do armário. 

Quando ele faz o desenho que você pede, com o detalhe que fosse “algo bom de ver”, ele ilustra o seu quarto, preenchendo espaços que ainda não tinham sido observados. Então você corrige e ajusta as percepções dele. Ele imaginava que à noite você olhasse para uma televisão, mas na verdade você fita o seu aquário. Ele também identificava uma imagem pregada com quatro pontos na janela, mas não sabia o que era. Você fala que é uma foto de sua mãe, Thelma, que morreu quando você tinha apenas 11 anos. Na foto, Thelma está no Rio de Janeiro. É por isso que você mora sozinha com Antunes, com quem sua mãe casou, mas que você insiste em acreditar que não é o seu pai. Você nutre outra imagem de pai: Paulo, um ator de cinema por quem sua mãe tinha se apaixonado e que tinha ido morar no Rio de Janeiro.

Não é só sobre você que André vai capturando compreensões fragmentadas. Todo o entendimento de mundo dele é apreendido de forma fracionada, a partir das leituras incompletas dos livros copiados na livraria e papelaria J. Gomide ou dos canais de TV que ele passa sem prestar muita atenção. Parece, Silvia, que é assim que se forma a identidade de André, com referências variadas e díspares.

É ele quem conta primeiro como se apaixonou por você. Ele diz assim:

“A primeira vez que vi Silvia, ela estava tomando café de pijama de flanela. Comia bolacha Maria e tomava café com leite. Molhava a bolacha no café e comia. Me apaixonei”.

Na cena, é como se vocês já fossem íntimos, dividindo um café da manhã, por mais que estivesse cada qual em sua casa, aproximados apenas pelas lentes de binóculos do André. É tão bonito aquele apaixonar-se por algo tão banal feito pelo outro (tirando a ideia da observação sem autorização, claro, mas aí é só lembrar que é uma ficção, e deixo correr, pois também sou voyeur da história de vocês). 

André é introvertido, inteligente e um talentoso ilustrador. André é operador de fotocopiadora, como ele fala para as gurias, mas só se elas perguntam. Ele mora com a mãe, paga contas e impostos e não sai muito de casa, tendo como diversão noturna o vislumbre dos apartamentos ao seu redor. André observa, por sua janela, os vizinhos – e você – com um binóculo. Porém, no decorrer da história, ele passa a transitar, vamos dizer assim, entre ações morais e amorais e até legais e ilegais, mas, mais uma vez, por se tratar de uma ficção, ou mesmo por me apegar aos anseios desses quatro jovens (você, André, Marinês e Cardoso), vou aceitando e torcendo para que aqueles planos mirabolantes e inacreditáveis dêem certo. E o mais absurdo acontece: eles dão! 

André copia dinheiro, assalta banco, atira em uma pessoa e planeja duas mortes. Esse cara que só queria R$ 38,00 para poder ver você de novo passa a fluir entre vidas impossíveis. E você, no meio de tudo isso, não se assusta ou hesita a partir de nada do que ele faz ou fala. Você mergulha em todas essas histórias, como se estivesse apenas esperando ele tomar coragem para convidar você para essa aventura. 

E por falar em aventura, é tri-legal que a história de vocês seja uma mistura de vários gêneros do cinema, é como se assim eu pudesse me sentir dentro de uma das colagens do André. Percebo influências, de maneira alusiva ou explícita, de histórias em quadrinhos, de documentarismo, de animação, de comédia pastelão e até de ópera… Assim, é como se em um só filme, Silvia, eu pudesse viver através de vocês uma mistura de aventura, comédia, crime, melodrama, drama, fantasia, histórico, mudo e erótico. 

Ainda tem toda a história da galinha. Quando vocês quatro planejam a história da galinha, criam um fato não-espontâneo – a sobrevivência de uma galinha de uma explosão. Assim, tornam a relação com a realidade (o assassinato de um homem) ambígua e até menos importante do que esse pseudo-acontecimento. É que nessa mistura de gênero de filmes, há ali também umas teorias da comunicação incluídas, o que, devo admitir, acho muito interessante. Afinal, mesmo sendo essa jornalista fora da redação, juntar esse meu amor pelo cinema brasileiro com referências aos estudos de mídia e de comunicação me deixa bem animada!

Mas vamos voltar para o desfecho da história. A questão, Silvia, é que você estava mesmo esperando por André, como descobrimos no final. Quando você, André, Marinês e Cardoso conseguem sair de todas as confusões, muito mais ricos do que iniciaram a história – vale dizer, e vão para o Rio de Janeiro ao encontro do cara que você acha que é o seu pai biológico, você escreve para ele. E nessa carta passo a entender e a enxergar toda a narrativa com outros olhos. 

Na carta para Paulo, com referências no PS à obra Carta ao Pai, de Kafka, você retoma os fatos, omitindo alguns detalhes que não quer ou não pode falar. Afinal, cartas são quase verdade, ou melhor, escolhas das verdades que se quer colocar naquele momento. E como você expõe, e eu concordo, ao escrever conseguimos ordenar as coisas melhor e fica assim um pouco mais fácil entender a vida. Nessa carta, você conta como descobriu que André espionava você, e como você escolhia o que ele podia ver. Os papéis invertem-se, transformando observador em observado; posso então arriscar dizer que se passa do male ao female gaze. Você também o observava e o seguia, deixando ele achar que era somente ele que ia atrás de você. 

Com a sua carta, Silvia, “rebobinamos” o filme, desculpe o termo antigo, e passamos a encarar com outros olhos o seu papel em toda a narrativa. É como se você dissesse: fique mais atento com o que você enxerga, são apenas percepções, e não necessariamente fatos. 

Você desconstrói a grande narrativa do filme e cria um outro ponto de vista. Você nos lembra que as histórias são múltiplas. E a partir do momento que abre os meus olhos e avisa que estava lá desde o início, posso ver você! Vejo você na papelaria, jogando um cartão postal do Rio de Janeiro para André, e vejo você no reflexo da vitrine de uma loja, quando André fala sobre o salário dele. Foi você quem permitiu que ele te visse de calcinha e sutiã! Isso é muito importante de estar lá, sabe? Porque traz para você o domínio do olhar sobre o seu corpo. Foi você quem mudou de ônibus para tentar encontrá-lo e ainda passou a almoçar mais perto do trabalho dele para que ele a visse e a relação de vocês se tornasse menos distante!

Ao entendermos essa camada da história, tudo passa a ter mais sentido. Ah, como eu gosto de uma personagem mulher que vai lá e torna-se protagonista de sua vida, mesmo que com escolhas tímidas. É bom saber que você também conduzia aquela jornada de dois jovens duros de grana e inteligentes que sonhavam com uma vida melhor! A vida é mesmo original, Silvia, e nos traz essas surpresas, basta estarmos atentas e fortes para ver o apoio e interesse que há nas pessoas.  

Acho que a questão para você, Silvia, é que deu pra ti o abuso e o abusador; deu pra ti as dificuldades, os perrengues e a solidão; deu pra ti fingir que não é a criadora dessa história; deu pra ti o que era, agora tu quer o que deveria ser. E por falar em “deu pra ti”, preciso dizer o quão interessante é escutar esse sotaque, mesmo um tanto falso, de vocês. Mas se toda a sua história – e de seus parceiros – é construída entre o real e a ficção, entre o original e a cópia, os símbolos importam mais do que a verossimilhança. Assim, com o “tu”, os cenários, e as referências, vocês constroem um audiovisual regional, não no sentido de tradição parada no tempo, mas de relacionar-se com o seu ambiente, traduzindo-o e sendo entendido e respeitado como tal. 

Sabia que foi quando Jorge Furtado assistiu ao filme Deu pra ti, anos 70, que decidiu que ia fazer cinema? E sabia que o cinema gaúcho foi uma das minhas primeiras paixões dentro da nossa cinematografia? Mas essas histórias já valeriam uma outra carta. Por agora, fico por aqui. 

Um abraço, guria.


O homem que copiava, de Jorge Furtado

André tem 20 anos e o segundo grau incompleto. É operador de fotocopiadora na livraria e papelaria J. Gomide, no 4º Distrito, em Porto Alegre. Mora com a mãe. Gosta de desenhar e gosta de Silvia. André precisa desesperadamente de trinta e oito reais. Silvia tem 18 anos. Estuda à noite e trabalha como balconista numa loja de roupas femininas. Mora com o pai, gosta de ler e não é muito de figo. Silvia marcou um encontro no alto do Corcovado e não pode faltar. Marinês trabalha na papelaria, com André. Namora, mas não muito, um alemão que vive na Holanda. Marinês fica muito bem em vestidos que não tem dinheiro para comprar. Cardoso faz tudo por ela. E Marinês faz de tudo com ele. Quase tudo. Cardoso parou de fumar. Há dois dias, a pedido de Marinês. Ele nem está sentindo muita falta do cigarro. Só às vezes, depois do almoço. Aquele cigarrinho. Se você não fuma, não sabe o que é aquele cigarrinho depois do almoço. André precisa de trinta e oito reais para comprar um chambre de chenile e para salvar a vida de Silvia. André faz muitos planos para conseguir dinheiro. E todos dão certo.

O filme é brasileiro, realizado em 2003, portanto inserido na “retomada” da produção nacional. A película foi dirigida pelo gaúcho Jorge Furtado, que transita por diversas linguagens audiovisuais. A Casa de Cinema de Porto Alegre é responsável pela produção. Furtado escreveu livros, cursou quatro faculdades, sem concluir nenhuma, é reconhecido internacionalmente pelo curta-metragem Ilha das Flores (1989) e seu primeiro longa, Houve uma vez dois verões (2002), foi captado em câmera digital. 

Silvia é interpretada por Leandra Leal. A atriz estreou no cinema com 15 anos em A ostra e o vento (1997), de Walter Lima Júnior. 

Referência: 

André, o jovem contemporâneo: O homem que copiava e seus elementos pós-modernos – Monografia de conclusão de curso de Comunicação Social – Jornalismo, na Universidade Federal do Ceará (UFC), Lina Távora

Cartaz de O homem que copiava

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

3 respostas em “Carta para Silvia | O homem que copiava”

Eu amo esse filme e não canso de revê-lo, mas me expliquem por favor o papel da galinha no final do filme e dou graças a Deus por não ter acontecido nada com a coitadinha.

Eles propositalmente queriam que a galinha ficasse viva após a explosão. Dessa maneira a galinha serviu para que os jornais e a mídia dessem mais foco nesse acontecimento do que na morte do pai da Silvia. Assim sempre que alguma mídia fosse noticiar o acontecimento, eles iam dar foco nisso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *