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Pantanal e o Brasil repleto de Marias Bruacas

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Mais do que a protagonista que vira onça e o velho que vira sucuri, a novela Pantanal tem dado o que falar por causa da bruaca que vira mulher.

Uma das personagens que mais tem chamado a atenção do público no remake de Pantanal, atual novela das 21h da Globo, é a Maria Bruaca. A personagem foi interpretada na versão anterior por Ângela Leal e atualmente por Isabel Teixeira.

Maria é caracterizada como dona de casa, esposa e mãe. Dedicou a vida inteira ao cuidado com o lar e com a família, sempre submissa e restrita ao ambiente doméstico. Enquanto a novela explora constantemente as belas paisagens do Pantanal, com os personagens dando passeios diários a cavalo ou de barco, nadando no rio e sobrevoando o local de avião, Maria afirma em um episódio que nunca saiu de casa para passear pela região, mesmo morando lá há anos.

Tenório, seu marido, a humilha constantemente. Além de cobrar uma atitude servil e submissa, é grosseiro ao se relacionar com ela, não respeita seus desejos e vontades, e a destrata tanto na intimidade quanto na frente dos outros.

A personagem ficou conhecida como Maria Bruaca devido ao fato do marido constantemente chamá-la dessa forma. Bruaca é uma forma pejorativa de se referir a uma mulher feia, desinteressante e muitas vezes velha. De tanto ouvi-lo se referir à esposa assim, vários outros personagens a chamam da mesma forma, considerando-se autorizados a apelidá-la, sem nunca se importar com seus sentimentos ou com educação e respeito. Alguns poucos torcem o nariz ao presenciar as grosserias, mas raramente se manifestam, sob a velha lógica de que “em assunto de marido e mulher não se mete a colher”. 

Maria ficou 30 anos naquela casa, sem acesso a outras referências. Não vê televisão, não folheia revistas, não lê livros, não tem amigas e mal sai de casa. Os outros permitem que o marido a maltrate e naturalizam os desaforos, sem nunca defendê-la. Nesse contexto, a personagem passou a vida inteira acreditando que essa dinâmica era aceitável e natural.

Quem destoa desse discurso é sua filha Guta, engenheira formada em São Paulo. Com outras experiências e referências completamente diferentes, Guta é feminista, rebelde, enfrenta o pai e defende a mãe. Após muitos anos morando longe do pantanal, ela volta para casa e se torna o único ponto de apoio da mãe. É a única que briga ao ouvir o apelido de bruaca e conversa com ela sobre empoderamento, respeito e sexualidade, temas até então alheios ao repertório de Maria.

Entretanto, a semente de mudança que Guta tenta emplacar no pantanal muitas vezes é marcada mais pela teoria do que pela prática e mais centrada em si do que na mãe. A maioria de suas conversas sobre liberdade é destinada a justificar seus próprios comportamentos mais do que ensinar a mãe ou incentivá-la.

Enquanto Guta fala sobre empoderamento e aconselha Maria a tomar as rédeas de sua vida nas mãos, a jovem em nenhum momento questiona que é a mãe que cuida de tudo em casa, não compartilha as atividades com ela, nem exige que o pai o faça, permitindo que a mãe continue sobrecarregada (a mudança vem mais para a frente com a contratação de uma empregada doméstica, uma opção que permite à jovem manter seus privilégios). Todos os dias Guta passeia pelo Pantanal, nada no rio, participa das rodas de viola, faz amizades e em nenhum momento convida a mãe ou incentiva que ela tenha experiências de lazer ou tempo para ela própria. É cômodo focar nas grosserias verbais de Tenório e ignorar os outros vários traços de machismo que aprisionam aquela mulher e dos quais ela própria é beneficiária.

O encarceramento de Maria Bruaca nesse papel de dependência e subserviência não foi gerado apenas pela brutalidade e pelo machismo do marido (apesar de ser o que mais chama atenção), mas também pela omissão e naturalização de todos à sua volta. É importante que o público reflita sobre os casos similares que acontecem ao seu redor e sobre o seu próprio papel no desenrolar dessas violências.

Afinal, como disse a atriz Isabel Teixeira, em entrevista ao Uol:

“a gente pode pensar que essa personagem não existe mais, que está fora de contexto, mas isso não é verdade. Ainda existem muitas Marias Bruacas por aí. A gente julga, dizendo que essa é uma mulher ‘que deixa o marido fazer isso ou aquilo porque é tonta’, mas não é tão simples assim. Cheguei à conclusão de que ela é uma mulher que acreditou e ainda acredita em uma história de amor. O Tenório era um homem que trabalhava para o pai da Bruaca e eles se apaixonaram muito jovens. Essa paixão fez com que ela pulasse a janela da casa dos pais, fugisse e se casasse com ele em uma delegacia. Havia um sentimento mútuo, mas, com o tempo, ela passa por cima das próprias vontades, fazendo concessões por uma paixão que a moveu há 30 anos. Em maior ou menor grau, quantas vezes você, eu ou uma amiga esquecemos de perguntar: ‘Isso é bom para mim?’. Ou pensamos: ‘Ele é assim mesmo’, ou ‘estou acostumada’. A Maria fala isso o tempo todo para si”.

Quando parecia que nada mudaria, uma descoberta faz com que o mundo da personagem vire de cabeça para baixo. Maria Bruaca descobre que seu marido tem uma outra família em São Paulo, com mulher e três filhos crescidos. Ela sente que viveu uma mentira por décadas e o que sustentava suas ações e crenças sofre um forte abalo. Ela passa então a reavaliar seu casamento, sua rotina e as dinâmicas dentro de casa.

Houve uma enorme campanha nas redes sociais para que a personagem reagisse e se separasse (não sem antes revidar a traição). E de fato, houve o despertar de um movimento na Maria Bruaca, mas ele não tem sido simples como a maioria das pessoas esperou. A personagem sofreu um grande golpe que abalou as estruturas sobre as quais ela vivia. E, assim como ocorre na vida real, o processo de se reestruturar não é simples, não é linear e dá medo.

Isabel Teixeira refletiu sobre o assunto na entrevista já mencionada:

“Às vezes me perguntam qual é a virada de chave para a Maria, mas ela não tem uma virada de chave, ela tem um processo que vai até o final da novela. É muito fácil pensar que a Maria vai virar a chave e começar a odiar o Tenório porque ele é um bosta, mas não. Tem amor ali, ela sofre por ele. Existe um processo de cura, de transformação. Ela vai viver tentando se erguer depois da queda”.

Dessa forma, em um momento inicial, Maria briga com o marido, exige que ele pare de chamá-la de bruaca e assume uma posição de independência em casa. Não cozinha, não lava roupa e decide cuidar só de si. Quando parecia que esse seria um caminho sem volta, o medo bate. Medo da solidão, do desconhecido, do marido ir embora, de ficar sem nada. E Maria volta a cuidar do marido e a aceitar determinadas situações. De vez em quando a raiva aflora e ela briga novamente, depois repensa e tenta viver em paz com Tenório. É um processo tortuoso em que ela se debate tentando enxergar quais são os caminhos possíveis para a sua vida a partir das suas próximas decisões.

Nesse processo, ela decide dar o troco da traição e se aproxima dos peões da fazenda. Mas muito mais do que se vingar do marido com “a mesma moeda”, Maria está tentando vivenciar sua sexualidade, um aspecto tolhido durante a maior parte da sua vida. No início da novela era comum vê-la esperando o marido à noite, na cama do casal, apenas para ser desprezada e humilhada. Com os peões ela assume uma postura independente, escolhe o momento, o local, se sente bonita e desejada. Ela inclusive se apodera do apelido de bruaca e o ressignifica. Pede para ser chamada assim na hora do sexo e, ao invés de significar uma mulher desinteressante, o nome Bruaca passa a simbolizar a concretização do seu prazer.

O grande mérito dessas cenas não é a vingança contra o vilão, mas finalmente a vivência positiva da sexualidade de Maria. O foco não é ele (apesar de muitas pessoas se refestelarem com a vingança), é ela.

Seu processo de libertação vai muito além de ter um amante e se desprender do fogão. É algo muito mais elementar e interno. Que emoção é ver a sua alegria quando saiu pela primeira vez para passear no rio, após 30 anos presa em casa cuidando dos outros. Ver a sua espontaneidade ao entrar no rio e jogar água para todos os lados como uma criança, chorando encantada com a beleza da paisagem.

“É bom de repente a gente sentir que está viva. Parece que eu só conhecia o mundo pelas janelas da minha cozinha”, disse a personagem na beira do rio.

“Pensava até que eu já tinha morrido por dentro, mas graças a Deus eu estou viva. Eu sinto uma vontade de entrar nessas águas e lavar minha alma, meu corpo. Uma vontade de viver”.

Cabe destacar que cenas de outras personagens nadando no rio são muito comuns na novela. Guta, Madeleine, Irma, Maria Marruá, Muda e a protagonista Juma já foram vistas diversas vezes nadando sem roupa. Na cena que representa a libertação de Maria Bruaca e que é o auge do seu empoderamento, ela decide fazer o mesmo. A personagem começa a tirar o vestido, mas o peão Alcides suplica que ela não faça isso. Ela fala que quer ser livre, mas ele insiste que ela não pode tirar a roupa. Então Maria entra na água de vestido.

A cena foi linda e a trajetória de libertação da personagem é importante e tem muito a comunicar ao público, mas é importante ressaltar que a Globo perdeu uma grande oportunidade de realmente questionar o machismo que aprisiona e machuca as mulheres diariamente. Enquanto personagens de 20 e poucos anos são mostradas se divertindo e curtindo a natureza em um dia qualquer, despreocupadas com os olhares dos outros, uma mulher de quase 50 anos, no momento auge da sua libertação, foi obrigada a cobrir o corpo para entrar no rio.

Isabel Teixeira já se manifestou em entrevistas dizendo que revolucionário mesmo seria ver um nu com peito caído na novela. Essa seria a verdadeira representação da liberdade da Maria Bruaca e de tantas como ela. O roteiro tenta construir o seu processo de independência, de compreensão de si, do seu corpo e das suas vontades, mas continua dizendo que esse corpo não pode ser visto e que essas vontades devem se adequar ao padrão e ao esteticamente aceito.

Isabel afirma ainda:

“Ela não vai virar uma femme fatale. As pessoas imaginam o quê? Que ela vai operar o peito que caiu, fazer uma harmonização facial e botar para quebrar? Isso não vai acontecer. Essa mulher não sabe seduzir da forma que estamos acostumados a ver na TV. A sexualidade dela é outra, menos estética”.

O ideal seria que a emissora abraçasse essas particularidades da personagem e mostrasse ao público uma forma diferente de se sentir à vontade com o seu corpo. E isso vai muito além de ter um amante.

O ideal seria que Maria Bruaca pudesse explorar a sua sexualidade e ter autonomia sobre o seu prazer, seja com um companheiro ou sozinha, mas sem esconder ou cobrir seu corpo. Da forma como tem sido feito, a obra comunica que sua libertação é incentivada, mas só até determinado ponto. E que o empoderamento das mulheres é completamente diferente com base em sua idade e seu corpo, mesmo que esse corpo seja exatamente o que ela esteja tentando libertar.

Nas redes sociais, muitas pessoas estão manifestando sua torcida pela personagem e se apresentam como “maria bruaquers” em apoio. Muitas mulheres aproveitam a oportunidade para dizer que se identificam com a trajetória da Maria Bruaca e que acompanhar o seu processo de libertação tem ajudado a refletir sobre a possibilidade de mudanças em suas vidas.

Ficamos na torcida para que essas cenas sejam cada vez mais vistas, que impactem positivamente o público e que também suscitem outros incômodos e questionamentos. É necessário compreender a história da Maria Bruaca como mais do que “apenas” o resultado das grosserias do marido e da exploração de suas atividades domésticas. Compreender que as violências que ela sofre englobam também o apagamento da sua individualidade e a negação da sua sexualidade.

Que as Marias Bruaquers entendam que merecem respeito e merecem ser valorizadas e que também merecem tudo aquilo que é considerado menor, mas que é tão importante quanto: ter tempo para cuidar de si, atender às suas demandas, se conhecer, descobrir do que gostam e ampliar seus horizontes.

Que elas possam entrar nos rios, independentemente da idade, sem se envergonhar nem serem tolhidas.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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