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This is us: pais super-heróis e mães em suas sombras

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Se você já ouviu falar de This is us, provavelmente escutou que é um seriado que envolve muito choro e que foca em relações interpessoais, especialmente em relações familiares. Estamos acostumados a acompanhar histórias que desenvolvem vínculos fortes entre mulheres (entre mães e filhas, entre avós e netas, entre irmãs), tanto em relação às dificuldades quanto aos laços que as unem e as fortalecem.

Um diferencial de This is us é que a série foca bastante nas figuras paternas e desenvolve seus personagens em um modelo de masculinidade que ainda está ganhando espaço nas narrativas. Homens que choram, que demonstram vulnerabilidade, que demonstram amor e carinho sem vergonha e sem ressalvas, que expõem seus medos e suas culpas, que buscam se reinventar, se aprimorar e que falam sobre seus sentimentos (espontaneamente ou impulsionados uns pelos outros). Pais extremamente presentes, participativos, afetuosos e responsáveis.

Esse modelo tem agradado as gerações mais jovens de espectadores e especialmente os homens, que se sentem melhor representados nas telas a partir dessa paternidade positiva e marcada pelo afeto.

A figura paterna central da série é Jack Pearson, interpretado por Milo Ventimiglia (o eterno Jess de Gilmore Girls). É difícil encontrar quem não seja apaixonado por esse personagem. Ele é o marido que todos querem ter e o pai que todos sonham em ser. Ele se desdobra para dar tudo que todos à sua volta precisam e é conhecido pelos grandes atos: um super conselho que vai afetar para sempre a vida de um dos filhos; uma mega demonstração de amor que vai derreter todos os corações; um gesto para que o filho se sinta amado e apoiado em um momento decisivo. Ele sempre parece saber o que falar e o que fazer, principalmente nos momentos difíceis. E seus atos serão lembrados com muito carinho por todos ao longo das décadas que vêm pela frente.

Dito isso, é importante frisar que ninguém é perfeito. E que mesmo os pais incríveis são humanos e falhos, o que não significa que não tenham sido excelentes para seus filhos. Jack é um homem amoroso e responsável, mas que guarda muitos traumas (da sua própria criação e do seu exemplo de pai, da guerra, de sonhos pessoais não realizados e de um alcoolismo negado e escondido). E eles eventualmente vêm à tona, não percebidos pelos filhos, mas impactando especialmente a relação de Jack com sua esposa Rebecca.

Ele não é o único pai da série, seus filhos e seu genro também são desenvolvidos na história como pais maravilhosos. Apesar de algumas dificuldades e erros, no geral, todos eles seguem o modelo de pais de gestos grandiosos e de super declarações de amor. William, pai biológico de Randall, quando entra em sua vida, assume rapidamente um papel de protagonismo, com várias conversas significativas, conselhos marcantes e sabedoria paterna. Protagoniza, inclusive, alguns dos momentos mais bonitos e tristes do programa.

Apesar de ser lindo acompanhar esses vários exemplos positivos de paternidade e sem negá-los de forma alguma, é importante também falar sobre como a narrativa constrói as mães em torno desses grandes pais.

Rebecca é esposa de Jack e mãe de Randall, Kevin e Kate. Ela é uma excelente mãe, mas suas ações costumam chamar menos atenção do que as do marido, que é quem frequentemente está sob os holofotes. Companheira, atenciosa e carinhosa, Rebecca participa de todas as fases da vida dos três filhos durante décadas. Ela tenta dar atenção a todos eles, se preocupa, aconselha e busca evoluir continuamente. Sua força é muito mais marcada pelas “pequenas” coisas e pelos cuidados do dia a dia, enquanto o marido é conhecido pelos gestos memoráveis.

Enquanto Jack aparece como protagonista apaixonante, Rebecca foi mostrada durante várias temporadas quase como coadjuvante. Como a mãe que ajuda a sustentar a lembrança do pai e do marido dos sonhos. Desde o início da série, ela é desenvolvida com pesos diferentes nas esferas “par romântico” e “maternidade”. O roteiro prioriza seus momentos como namorada e esposa, onde a personagem apresenta muito mais força e brilho, compondo uma grande história de amor que funciona como pilar do programa.

Como mãe, frequentemente é apresentada como apoio do marido, mesmo quando ele nem está mais no cenário. Muitos anos se passam antes que ela assuma um protagonismo na história e na vida dos filhos e isso só ocorre devido a um problema de saúde que faz com que todas as atenções se voltem para ela.

Mas mais do que a esposa apaixonada e mais do que a viúva que sempre proporciona doces lembranças de Jack, Rebecca é uma pessoa inteira e extremamente forte. E merece a mesma admiração que sempre foi direcionada ao marido. Se Jack foi o amor da vida de todos, Rebecca foi a rocha que os sustentou. Assim como ele, cometeu erros (alguns grandes, outros pequenos). E assim como Jack, ela é muito mais do que apenas os seus erros.

Rebecca sempre foi a que proporcionou a estabilidade da família. Cuidava das obrigações, dos problemas de saúde, da alimentação balanceada, das coisas “chatas”, porém necessárias do dia a dia. Apesar de Jack também participar ativamente de muitas dessas tarefas, para ele foi reservada a maioria dos momentos divertidos, das memórias duradouras e dos aprendizados que seriam os divisores de água na vida dos filhos. Enquanto ele se destacava e criava soluções para os problemas maiores, ela se mantinha discreta e era a água calma que fazia com que tudo continuasse fluindo, nos momentos de paz e nos momentos de dor.

Ela segurou as pontas quando Jack passava por fases sombrias e também quando não tinha mais o parceiro ao seu lado. Rebecca precisou tirar forças de onde não existia para se reerguer e se reinventar, para sustentar a casa e para criar os três filhos. Precisou consolá-los e protegê-los, enquanto ela própria estava em frangalhos.

No fim das contas, devido a eventos que independem da vontade de qualquer um deles, Rebecca passou muito mais tempo ao lado dos filhos do que Jack. Participou de mais fases da vida deles, inclusive as mais difíceis e transformadoras. E manteve-se como rocha ao lado dos filhos, dando apoio, conforto e segurança. Não da forma como Jack faria, mas da maneira que ela própria conseguia e sabia fazer.

A grande injustiça dessa situação é que é muito mais fácil (para os filhos e para os espectadores) admirar os grandes gestos que se destacam do que perceber e valorizar os pequenos atos do cotidiano, mesmo quando eles exigem da mãe força e resiliência simplesmente para continuar seguindo. Mas, afinal, lutar para continuar em frente e para fazer tudo funcionar, mesmo em meio às tragédias, não é também um enorme gesto de amor?

Esfera familiar “versus” esfera profissional

Assim como Jack, Rebecca abriu mão de sonhos pessoais e profissionais para concretizar o que o casal estabeleceu que a família precisava com a chegada dos trigêmeos. Ele passou a trabalhar com algo que não amava para ser o provedor da casa e ela deixou de seguir sua vocação para estar em casa com as crianças. Mesmo em um modelo de paternidade que se propõe a questionar fórmulas ultrapassadas e a atualizar valores e estereótipos, a série ainda fica presa em algumas questões para lá de antigas.

Com os trigêmeos mais velhos, Rebecca tentou voltar a cantar e estava se sentindo realizada com as oportunidades que surgiam. Mas teve seus planos frustrados justamente pelo ciúme e pelos traumas não trabalhados de Jack, o que colocou um fim em seus sonhos. Bom marido e excelente pai, no quadro geral isso é inegável. Mas suas falhas e defeitos costumam ter um alvo certo: a companheira “inabalável”, que representa a estabilidade e o apoio irrestrito, que algumas vezes acaba sendo uma relação de mão única.

Além de ser impedida de viver sua vocação, quando Rebecca precisou trabalhar para sustentar a casa após a viuvez, isso mal foi retratado na série (até o momento), o que demonstra que a esfera profissional não é o foco que o programa quer dar para a personagem. Mas será que ela é a única que sofre com isso?

Beth é esposa de Randall e é construída como uma personagem forte e determinada. Ainda assim, ela orbita em torno de Randall. Suas questões costumam girar em torno do marido, das necessidades dele e das preocupações com o seu bem estar. 

Em alguns poucos capítulos, conhecemos partes do passado de Beth e suas ambições e sonhos. Mesmo assim, eles ficam na sombra das demais histórias e das necessidades da família. Em uma ótima cena, William utiliza uma metáfora e diz que Beth é o baixo do grupo, “o instrumento mais silencioso do quarteto do jazz”, explicou ele. “O solo recebe toda a fama, mas o baixo segura as pontas. Vai ter um momento no seu futuro em que precisará ser a solista. Ponha suas necessidades na frente”.

Randall ganha muito bem e se destaca profissionalmente, mas sente a necessidade de mudar de carreira e de gerar impacto direto na sociedade. Nesse processo, ele tem a liberdade de sonhar e de se reinventar como quiser. E isso muitas vezes impacta não apenas na vida dele, mas na organização e nos planos da esposa e das filhas. Isso é possível porque ele conta com o apoio irrestrito da família.

Assim como Rebecca abandonou a música, há muito tempo Beth abandonou a dança. Para ambas, abrir mão desse lado de si deixou uma grande lacuna, um espaço que pulsou silencioso por anos. Em determinado momento de suas vidas, as duas decidem retomar esses talentos que são partes tão fundamentais delas. Rebecca foi atrapalhada por Jack e Beth foi atrapalhada pela vida (ou no caso, pelos roteiristas).

Beth quis voltar a dançar e montou seu próprio estúdio de dança, mas teve seus planos frustrados pela pandemia de Covid 19 (introduzida na narrativa), o que fez com que esse aspecto de sua vida tenha que ser novamente pausado.

É interessante que, em plena pandemia, Randall continua sendo retratado tanto no âmbito profissional quanto pessoal. Ele e sua equipe continuam trabalhando incansavelmente. Seu irmão Kevin, um ator famoso, mesmo com várias medidas de segurança, também continua trabalhando. Tobey, marido de Kate, é demitido, o que o deixa extremamente frustrado e com a certeza de não poder ficar em casa como pai em tempo integral. Isso o leva a fazer diversas entrevistas e a tentar vagas por todo o país. Assim como Jack, todos eles são mostrados como maridos, como pais e como profissionais. E a pandemia não é suficiente para mudar isso.

Ao mesmo tempo, Rebecca, Beth, Madison e Kate, na maior parte do tempo, são retratadas “apenas” como mães e esposas. Fórmula que se repete em todos as protagonistas da série.

Beth foi a única que teve sua profissão interrompida pela pandemia, diferentemente dos personagens masculinos, o que demonstra que é muito mais uma escolha de roteiro do que um apego à veracidade. Kate é mostrada na maior parte da série trabalhando esporadicamente, realizando bicos sem continuidade e sem envolvimento, tendo também abandonado seus sonhos relacionados à música. Sua vida profissional e seu talento definitivamente não foram o foco dos roteiristas, pelo menos até meados da 5ª temporada (e ficamos na torcida para que isso mude definitivamente). E sobre a vida profissional de Madison, companheira de Kevin, o espectador não tem praticamente informação nenhuma, sendo abordada apenas a sua vida pessoal, suas relações amorosas e familiares.

Então o que a série está nos dizendo sobre maternidade e paternidade? Jack precisou adiar seus sonhos profissionais por uma necessidade financeira quando teve os trigêmeos, mas anos depois estava disposto a finalmente realizar seus projetos (apesar de ter sido impedido por uma tragédia, a indicação é de que ele tentaria concretizar seus planos). Kevin e Randall passam por dificuldades ao longo do caminho, mas tem a possibilidade de se reerguer e se reinventar profissionalmente, obtendo muito sucesso e contando com o apoio das pessoas ao seu redor. Essas possibilidades não parecem acompanhar as mulheres, presas pela narrativa nas esferas domésticas e familiares.

This is us acerta em trazer modelos atualizados de paternidade e nos emociona com pais reais, emotivos, carinhosos e participativos. Isso é lindo de ver e esperamos que seja incentivo para muitos espectadores. Mas ainda é preciso questionar muito a fórmula da personagem esposa/mãe vinculada à abnegação, à anulação pelos demais e ao apoio silencioso e irrestrito. Precisamos aprender o equilíbrio de ter um bom pai, sem sobrecarregar nem eclipsar a mãe. Uma representação em que ambos possam ser admirados, amados e desenvolvidos como pessoas completas e com espaço para diversas esferas.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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