Intimidade em close up no filme A cidade onde envelheço
A cidade onde envelheço (2016), de Marília Rocha, é um mergulho nas possibilidades de um “cinema de intimidade“1 – intimidade como gênero cinematográfico. A história narra as escolhas de Francisca (Francisca Manuel) e Teresa (Elizabete Francisca) entre chegadas e partidas em uma cidade que não é a de origem de nenhuma dessas duas lisboetas vivendo em Belo Horizonte, mas é a escolha do presente e quem sabe do futuro – das duas ou apenas de uma?
No filme, apesar de seu título, a cidade é apenas um cenário, com molduras geográficas de prédios. O que importa são as personagens, por isso, a câmera se aproxima tanto delas, em close ups constantes. Close ups no cinema são formas de indicar ao espectador o que é importante. Aqui quão mais perto das personagens, melhor.
“À queima-roupa. Repentinamente, um rosto surge na tela, e o drama, agora frente a frente, parece se dirigir a mim pessoalmente, assumindo uma extraordinária intensidade. Estou hipnotizado”2.
Há, no filme, um encantamento com a intimidade e com o cotidiano, naquele recorte específico de espaço-tempo da narrativa.
O cinema de intimidade “narra nossos pequenos conflitos, mais que nossas grandes batalhas”3.
O ambiente da casa, essencial para o desenvolvimento da intimidade, é constante. O apartamento de Francisca e Teresa é o palco principal da narrativa.
“O cinema de intimidade tem como base o fato de que qualquer cena de interior tem que ser trabalhada em um pequeno espaço de ação e no aconchego que é gerado por estar entre quatro paredes”4.
É como se a direção e a condução da câmera não ligassem para o espectador, com um elegante descaso em completar as lacunas da história de suas protagonistas.
Nem nas cenas com mais personagens ou mesmo em ambientes externos, a câmera abre. Não vemos, assim, a reação das outras pessoas, aquelas que estão fora do nosso foco, do close up daquele instante. O que importa, afinal, naquele contexto, senão os sentimentos dessas duas mulheres em cena?!
A câmera chega tão perto, como para sentir o cheiro dessas pessoas que vemos na tela. Podemos não saber seus passados, mas estamos lá com elas no momento presente. Os close ups e cenas “partidas” nos levam muito além do voyeurismo, mas há um compartilhamento privilegiado do espectador com aqueles momentos íntimos, banais ou cotidianos.
Os corpos dos personagens, quando juntos, chegam a perder suas fronteiras, numa fotografia que também caminha para essa intimidade presente. O corpo também é movimento de libertação, bem representado pela dança de Teresa – em casa, na balada ou nas suas aulas. São esses corpos, mesmo com a presença da cidade no título, que nos conduzem. É preciso desvendar aonde esses corpos querem viver e envelhecer.
Duas mulheres portuguesas nas terras do colonizado. Duas mulheres em momentos diferentes. Quando se encontram, geram o desencontro. Um ponto de virada para as duas. Como o que as uniu ativasse lembranças, saudades e expectativas – distintas, porém. O encontro, assim, as leva para caminhos opostos, como se trocassem seus destinos.
Francisca, Chiquinha, no nosso português, está farta do fado, ama Caetano e se encanta com Macalé. Mas sente falta do sal do mar em seu corpo. Quer voltar a mergulhar no mar e lamber a maresia em seus ombros.
Quer voltar.
Ela ainda acha estranho que do lado de cá as pessoas insistem em achar que os cigarros possam ser compartilhados. Assim, num ponto de ônibus. Admirando e estranhando os amáveis e folgados brasileiros.
Teresa acha que Lisboa ficou longe e pequena para as possibilidades que encontrou ao sair de seu lugar.
Para ela, é fácil entregar suas coisas e suas histórias a desconhecidos, se abrir para que se tornem amigos. Ela chega e, já na rodoviária, rememora com estranhos a casa que viveu na infância e traumas que possa carregar.
Ela divide cigarros sem hesitações.
Francisca e Teresa – mesmo sem nos apresentar didaticamente – têm uma história que as transformou e continua a transformá-las. Tem gente que é assim na nossa vida. Ativa botões que nos fazem mudar de direção.
Assim, no recorte de espaço-tempo do encontro (e desencontro) de Francisca e Teresa é que acontece esse filme de intimidade contemporâneo brasileiro, que nos leva junto para o encantamento do cotidiano, sem grandes batalhas, sem grande clímax, mas revelando pequenos conflitos e sentimentos que nos conduzem para as escolhas de uma vida.
Cinema de Mulheres
A cineasta mineira dirigiu os filmes Aboio (2005), melhor filme no festival É Tudo Verdade; Acácio (2008); e A falta que me faz (2009), melhor filme no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo.
Para escrever A cidade onde envelheço, a diretora se inspirou na história da atriz Francisca Manuel, uma das protagonistas do filme. O longa foi vencedor dos Prêmios de Melhor Filme nos festivais de Brasília, Biarritz, Lisboa e Santa Maria da Feira. O roteiro é assinado por Marília Rocha, João Dumans e Thais Fujinaga. Dumans dirigiu, juntamente com Affonso Uchoa, o longa Arábia (2017). Fujinaga já dirigiu três curtas: L (2011), A visita (2009) e Laurita (2009).
Ficha técnica
Ficção | 2016 | 99’ | Brasil-Portugal
Classificação indicativa: 12 anos
Diretora: Marília Rocha
Elenco: Elizabete Francisca Santos, Francisca Manuel, Paulo Nazareth
Referências
LINDSAY, Vachel. The art of the moving picture. New York: Liveright, 1970.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. São Paulo, SP: Papirus, 2003.
TÁVORA, LINA. Cinema de Intimidade: proposta de gênero para o novo cinema brasileiro. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Brasília, DF.
1. TÁVORA, 2010↩
2. EPSTEIN apud STAM, 2003: 52↩
3. “It is apt to chronicle our petty skirtmishes, rather than our feuds” (LINDSAY, 1970)↩
4. LINDSAY, 1970↩
Uma resposta em “A cidade onde envelheço | Crítica”
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