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Memórias e melancolia: Aftersun, de Charlotte Wells

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Ao assistir ao filme Aftersun, de Charlotte Wells, um questionamento instalou-se em minha mente: como construímos nossas memórias? Como carregamos e como nos livramos dos pesos e das dores dos nossos pais? Como nos reinventamos a partir de vídeos caseiros, de falas gravadas na memória, de lugares e de viagens que foram sendo recontados por nós ao passar do tempo?

Você tem alguma lembrança tão nítida em sua mente, mas recriada tantas vezes que nem sabe mais se inventou, e a partir do quê, ou se de fato aconteceu – ou uma mistura das duas coisas? Carregamos narrativas de nossas vidas contadas por terceiros e recriadas em nosso coração. 

E assim é a história de Sophie e do seu pai Calum.

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No primeiro longa-metragem da diretora Charlotte Wells, Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), pai e filha, viajam para uma praia na Turquia, fora de temporada, em um hotel em reforma, nos anos 1990. Há carinho e cuidado de um pai com sua filha, que tem no ato de passar o protetor solar a sua epítome. Pelo olhar de Sophie, porém, há também a dor de um homem que sofre angústias não reveladas. Uma melancolia que, mesmo não sabendo o seu porquê, gera identificação e incômodo. Há um desejo de livrá-lo daquela dor, de livrar Sophie de carregar essa melancolia. A filha também deve querer o mesmo, embora ainda não entenda de onde vem aquele sofrimento. 

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No filme, é papel do espectador tentar juntar as peças de uma história de vida a partir de um recorte temporal tão pequeno e construído por fragmentos da não confiável memória de uma filha. Uma filha que agora é mãe, que, ao inverter esses papéis, parece tentar buscar cavar aquela melancolia do seu pai, compreendê-la e extirpá-la de si e de sua família. Uma garota que lembra daquele verão no qual tentou viver aquele tempo de intimidade e de coexistência próxima com a figura paterna com verdade e profundidade. 

Sophie diverte-se com sua câmera digital entrevistando o seu pai. As cenas revelam uma proximidade do que é filmado, com close-ups. Em outro momento, os dois estão no quarto de hotel, com uma só cama, a qual o pai cede para a filha e dorme no chão. 

A partir da década de 1960, com o surgimento da câmera portátil, o vídeo passa a ser usado de forma cotidiana. Essa nova prática altera a produção jornalística, publicitária e, ainda, a vida privada. O vídeo passa a ser usado nas recordações de família. É assim com Sophie. São cenas que revelam o “sublime no banal” (LOPES, 2007). 

As perguntas que Sophie faz ao “tão velho” pai durante a sua entrevista cutucam as suas dores. Apesar do amor, do carinho e do cuidado mútuo entre pai e filha, a conexão não é aprofundada. Por mais que as cenas sejam tão banais e sublimes, por mais que os momentos sejam cheios de graça e de intimidade, há sempre um distanciamento entre pai e filha.  O que ele queria ser quando tinha onze anos como ela? Ficamos sem respostas. “Por que você ainda diz a minha mãe que a ama?” Sophie pergunta em outro momento. Calum fala que é uma verdade, que a ama porque são uma família. Talvez, porém, o que Sophie gostaria de saber era sobre a relação dos dois como casal. Como foi que aquele amor acabou e se transformou em outro? Essa pergunta não feita por Sophie é o que parece ficar. Há ainda, nas perturbações de Calum, preocupações financeiras. Afinal, quem escolheria passar férias em um hotel em reformas? Mas isso ele também não admite para a filha.

Por trazer essa convivência em uma viagem, em um hotel, pode-se pensar na ideia de um não-lugar. Apesar de ser um momento dos dois, de convivência intensa, já que entendemos que não moram mais na mesma casa, ele não se passa, por exemplo, na casa do pai, mas em um hotel. Esse é um não-lugar. Para o antropólogo Marc Augé, o espaço do viajante é o arquétipo do não-lugar. Que não-lugares seriam estes? São aqueles que não podem ser definidos nem como identitários, nem como relacionais, nem como históricos – em oposição ao lugar, que é identitário, relacional e histórico (AUGÉ, 1994, p. 73). 

A casa que conhecemos no filme é a de Sophie adulta – ela com sua mulher e sua criança. E, mesmo assim, esse espaço de intimidade nos é revelado em poucas cenas. 

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O filme é costurado a partir de um troca troca de pontos de vista: são cenas gravadas por Sophie, são memórias da personagem ou são momentos em seu tempo presente? Parece que o que Wells deseja é nos colocar na mesma confusão entre memórias, fatos e recriações na qual se encontra Sophie adulta. É nessa confusão que nós espectadores deixamos o filme ressoar após o seu fim, após o verão, após um encontro solar entre uma filha e um jovem pai que não se permite mergulhos profundos em si mesmo. Que Sophie visite suas memórias e que passe a narrar a sua história com menos melancolia para si e para a sua família. 

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Referências:

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994. 

LOPES, Denilson. A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens. Brasília: EdUnB, 2007. 

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

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