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Elas no Oscar 2021: Bela vingança | Testes de representação e representatividade

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Bela vingança

Bela vingança (Promising Young Woman) é um soco no estômago. O filme gira em torno da cultura do estupro e aborda de forma intensa questões como culpabilização da vítima, os efeitos de um trauma e a retirada de responsabilidade dos homens sobre suas ações (“são só meninos”, “é necessário dar o benefício da dúvida”, “o homem é inocente até que se prove o contrário”, “essa suspeita poderia destruir a vida dele”, “eu não fiz nada, só observei”, “faz tanto tempo, hoje eu sou outra pessoa”).

Todas essas “justificativas” são a base do universo retratado pela diretora Emerald Fennell. O filme tem momentos leves, dramáticos e angustiantes e funciona como uma denúncia contra a sociedade machista em que vivemos e que é tão fácil de identificar nas telas.

Qualquer pessoa que tenha frequentado muitas festas, shows e eventos desse tipo reconhece algumas das situações mostradas no filme. Mulheres evidentemente bêbadas e vulneráveis e homens que insistem em se aproximar delas, que querem levá-las para casa mesmo que elas mal consigam andar direito ou sustentar a cabeça. Que ignoram todos os sinais óbvios de que elas não estão em condições de dar nenhum consentimento e às vezes ignoram o “não” expresso ou o pedido repetido para que eles se afastem.

Fennell é ácida em seu filme de estreia e demonstra que estamos exaustas de viver em um mundo assim. A obra é um grito de raiva, de revolta e de “basta”.

Mais conhecida por ter interpretado Camilla Parker Bowles no seriado The crown, Emerald Fennell foi roteirista de séries como Killing Eve e Drifters e dirigiu um curta-metragem em 2018 chamado Careful how you go. Ela tem uma pequena participação em Bela vingança.

Com seu primeiro longa-metragem, Emerald Fennell obteve três indicações ao Oscar (Filme, Direção e Roteiro). Se ganhar como diretora, se tornará apenas a segunda mulher na história da premiação a levar a estatueta para casa. Além dessas indicações, o filme também concorre aos prêmios de Atriz Principal (Carey Mulligan) e Edição (Frédéric Thoraval).

Sinopse geral do filme

De acordo com a percepção do Arte Aberta evitando spoilers

À sua própria maneira, Cassie tenta mudar a sociedade ao confrontar homens que se apresentam como pessoas boas (e que de fato devem acreditar que são), mas que na primeira oportunidade demonstram que são perigosos. Ela cria situações para avaliar como os homens lidam com limites e verifica que é assustadoramente comum que “caras legais” interpretem como aceitável uma situação que é evidentemente abuso sexual. Com a confirmação frequente de que a sociedade protege de formas diferentes homens e mulheres, ela tem dificuldade para seguir sua vida normalmente e entra em uma espiral obcecada por vingança.

A ótica das mulheres

Carey Mulligan dá um show como a protagonista Cassie. Estudante de medicina brilhante, com um futuro promissor pela frente, ela tem sua vida alterada por um evento traumático. Com dificuldade para lidar com a dor e com a raiva, ela abre mão da carreira, dos amigos e da vida pessoal. Cassie desenvolve um projeto que é parte vingança e parte vontade de gerar impacto na sociedade e foca sua vida em confrontar predadores sexuais para tentar evitar que eles machuquem mulheres. Nesse processo, ela diversas vezes age de forma arriscada, em uma rotina de auto sabotagem que a isola e compromete sua própria segurança. Alienada de tudo que não seja seu projeto, ela se afasta dos pais, esquece o próprio aniversário e não se importa com as boas oportunidades que surgem.

A mãe se preocupa com ela e cobra que a filha retome sua vida antiga. Com o pai há uma relação mais pacata, de carinho, de quem prefere se preocupar em silêncio do que se indispor com Cassie. O pai, que prefere não confrontar, tem nome. A mãe, que expressa o que ambos pensam, não tem. Infelizmente, sabemos pouquíssimo sobre ela e há um desenvolvimento negativo que a taxa, de certa forma, como chata e implicante. A única informação que o espectador tem de fato é que ela se preocupa com a filha e sonha que ela se recupere, que faça amigos, que namore, que arrume outro emprego e que tenha sua própria casa. Acabou, porém, sendo uma personagem sub aproveitada.

Cassie tem duas grandes amigas na história. Nina, de quem só ouvimos falar, e Gail (Laverne Cox), sua chefe. Nina e Cassie são amigas de infância, cresceram juntas, foram para a faculdade juntas e eram inseparáveis. Um exemplo de como a relação entre mulheres pode ser repleta de companheirismo e de irmandade. Gail é chefe de Cassie na cafeteria e tenta estimulá-la a crescer profissionalmente e a conhecer pessoas novas. É uma boa amiga, que a incentiva e deseja seu bem. Apesar de tentar se isolar, Cassie encontra boas amigas pelo caminho.

Infelizmente, Gail aparece apenas como amiga de Cassie e não tem um desenvolvimento próprio. Nina, apesar de não aparecer no filme, tem detalhes de sua vida contados e é muito importante para a história. A mãe de Nina também aparece no longa, mas de forma bem pontual e a personagem não tem nem mesmo nome. Ela aconselha Cassie e serve de contraponto à protagonista, mostrando uma outra forma de reagir a eventos traumáticos e prezando pela auto preservação. Apesar de sabermos um pouco do que aconteceu com sua família, não houve desenvolvimento dessa personagem e ela existe na obra apenas em função de Cassie e Nina.

Além da protagonista e de sua melhor amiga-irmã, as duas mulheres mais importantes para a obra são Madison e a reitora Elizabeth Walker, pois elas exemplificam como a cultura do estupro não é mantida apenas pelos homens, contando infelizmente com o apoio e o silêncio de muitas mulheres.

Madison era amiga de Cassie e Nina na faculdade. Incentivada pelos argumentos machistas da turma e com um despreparo para lidar com o assunto, no passado ela relevou um estupro e diminuiu sua importância, procurando justificativas no comportamento da vítima para o que aconteceu. Envergonhada, ela confessa que na época todos encararam a situação de forma diferente, tendo achado inclusive engraçado.

Apesar de chocante e revoltante, não é raro saber de mulheres que não identificam um ato como abuso e que não lhe dão a devida atenção. Que consideram uma acusação de estupro como tentativa de chamar atenção e uma vítima bêbada como alguém que “pediu” por aquilo. É importante que o filme mostre que a cultura do estupro envolve todos da sociedade e que são necessárias mudanças de todos os lados. Segundo a diretora, a intenção era suscitar a reflexão de que muitos de nós já fomos cúmplices de algo ruim, em algum nível, e pensar no que fizemos para mudar isso posteriormente.

No entanto, como forma de se vingar de Madison e fazê-la encarar suas atitudes, Cassie usa uma estratégia absurdamente cruel para fazê-la se sentir no lugar de uma vítima de estupro. Com muita raiva, a protagonista faz coisas indefensáveis.

Nesse mesmo processo, ela procura a reitora da universidade que no passado recebeu uma denúncia de estupro dentro do campus. Na época, a profissional concedeu o benefício da dúvida ao estuprador, mas não à vítima. Sob o receio de estragar a carreira promissora do jovem rapaz, ela preferiu arquivar o caso. Ela comenta com Cassie que recebe denúncias do tipo praticamente toda semana e é possível imaginar que, assim como não penalizou o agressor no passado, não penaliza nenhum dos abusadores que são denunciados. Ela sequer lembra do nome da vítima, não lembra de nada do caso, a não ser do estuprador, de quem se lembra com admiração e a quem contrata eventualmente para fazer palestras na universidade. Ou seja, o agressor é recompensado e louvado e a vítima esquecida com as consequências devastadoras do trauma. Mais uma vez, a ação “educativa” de Cassie ultrapassa limites e, para dar um ponto de vista diferente para a reitora, ela força uma situação desesperadora.

Fica evidente que ambas precisavam de uma séria chamada de atenção e possivelmente de uma sacudida para compreender como sua omissão contribuiu para a não responsabilização do criminoso e para a solidão da vítima. Ainda assim, é impossível negar que Cassie foi cruel com elas. Ela arquitetou situações horríveis e mexeu com sentimentos aterrorizantes na tentativa de gerar nelas alguma empatia para com as vítimas de abuso sexual.

Em sua revolta, ela não se importa em machucar mulheres e não respeita nenhum limite. Infelizmente, entre todas as suas vinganças e tentativas de “re-educação”, as piores foram contra as próprias mulheres.

Representatividade feminina na ficha técnica

Direção, Roteiro, Produção, Produção executiva, Direção de fotografia, Direção de arte, Figurino, Trilha sonora, Edição de som, Mixagem de som, Edição, Efeitos especiais e Maquiagem.

Tendo em vista as funções elencadas acima, restritas aos chefes de equipe e/ou pessoas que estão concorrendo ao Oscar, foram identificados 28 profissionais. São 14 homens e 14 mulheres (mas dessas 14, Emerald Fennell ocupa três cargos, sendo contalibilizada três vezes nos créditos). Bela vingança conta então com 54,8% de representatividade feminina em cargos-chave.

São elas: a diretora, roteirista e produtora Emerald Fennell; as produtoras Ashley Fox, Fiona Walsh Heinz e Margot Robbie; as produtoras executivas Alison Cohen e Carey Mulligan; a diretora de arte Liz Kloczkowski; a figurinista Nancy Steiner; as coordenadoras de música Jillian Ennis e Jackie Mulhearn; a supervisora de música Susan Jacobs; as editoras de som Miriam Cole e Laura Heinzinger; e a maquiadora Angela Wells.

Cabe destacar que não foi encontrado um cargo de chefia referente à trilha sonora, então foram elencadas as coordenadoras e a supervisora de música.

Representatividade feminina no elenco principal

Créditos finais

Não aparece no crédito um elenco principal em destaque, apenas o elenco inteiro por ordem de aparição. Foram identificados 28 atores. Destes, 10 são mulheres e 18 homens, contabilizando assim 35,7% de representatividade feminina no elenco.

Bechdel-Wallace

As mulheres têm nome? Se falam? É sobre homem?

Aprovado.

Cassie conversa com Gail, com Madison e com a reitora Elizabeth sobre temas diversos. O filme passa no teste de Bechdel com folga.

Mako-Mori

Tem mulher? Tem arco dramático? É apoiado no arco do homem?

Aprovado.

Cassie tem arco dramático e, apesar de ter relação com um trauma que envolve abuso, ele é mais vinculado à cultura do estupro e à sociedade machista do que a um homem específico. Se seu arco dramático é apoiado em alguém, é em sua amiga Nina.

Madison também tem um arco dramático desenvolvido no filme. Apesar dos eventos questionáveis que o geraram, ela é obrigada a encarar determinadas situações e a repensar suas próprias atitudes, dando uma guinada na história ao tentar se redimir.

Tauriel

Tem mulher? Ela só está na trama para ser par romântico/possui competência em algo?

Aprovado.

Cassie é péssima como funcionária da cafeteria. Ela destrata os clientes, cospe no café e ignora pedidos. Gail também só aparece conversando, deixa a funcionária ignorar os clientes e em determinado momento incentiva que a amiga transe no balcão em que a comida é servida. A reitora Walker obviamente não é competente, uma vez que não garante a segurança dentro do campus nem lida com seriedade com denúncias das alunas sobre violência dentro do espaço que é sua responsabilidade.

No entanto, Cassie e Nina são apresentadas como estudantes de medicina brilhantes e mais de uma vez é mencionado que elas se destacavam, que acertavam tudo e eram consideradas as melhores alunas. Especialmente Cassie, que era tão promissora que esse adjetivo até aparece no título original do filme (Promising young woman). Por esse motivo, ela foi considerada competente em sua fase de estudante.

Barnett

Tanto homens quanto mulheres falam entre si só sobre o sexo oposto? Os personagens masculinos têm comportamento atrelado à violência que trate como humor/falta de seriedade/normal/aceitável/como se alguém merecesse a violência?

Reprovado.

De forma invertida, quase que o filme reprova nessa primeira pergunta porque os homens conversam pouquíssimo entre si sobre algo que não seja o sexo oposto (afinal, na maior parte do filme em que eles estão juntos estão assediando mulheres em um efeito manada repugnante). Mas o filme não é reprovado por esse motivo uma vez que durante um jantar Ryan conversa com o pai de Cassie sobre amenidades.

Em relação à violência, existem cenas de abuso sexual e de agressão física contra mulheres no filme. Apesar da mensagem do longa-metragem ser de reprovação e denúncia, os personagens abusadores (e muitos a volta deles) consideram a violência como aceitável. Diversas vezes ao longo da obra é dito que a mulher bêbada se coloca naquela situação, que ela já tem idade para saber se cuidar e que ela vai ser a culpada se algo acontecer. No caso do estupro de anos atrás, a violência foi minimizada e a vítima culpabilizada. Por esse motivo, o filme reprova no teste de Barnett.

Resumo dos testes de representação e representatividade de Bela Vingança

Representatividade feminina na ficha técnica: 54,8%
Representatividade feminina no elenco principal: 35,7%
Bechdel-Wallace:Aprovado
Mako-Mori: Aprovado
Tauriel: Aprovado
Barnett: Reprovado
Bela vingança

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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