Nicole,
Você não quer mais mudar de ideia. Disso agora você tem certeza, mesmo ainda sem saber expressar isso de forma clara. E para não mudar de ideia, você precisa proteger-se de si mesma, porque seria tão fácil convencer-se mais uma vez, entregar-se mais uma vez, acreditar mais uma vez que aquela era sim a vida que você escolheu – e que continua escolhendo. Você, que admite muitas vezes não saber o que quer, sabe agora o que não quer mais. Na vida, é assim mesmo que às vezes conseguimos seguir em frente – pela recusa de um caminho, pela descoberta do que não se quer mais, antes mesmo de se ter a consciência de como será esse novo percurso. E esse já é um grande primeiro passo! No seu caso, “irretornável”, eu diria.
O casal modelo e ícone do teatro alternativo novaiorquino – “sempre foi Charlie e Nicole” -, como os colegas falam, rompe. Porque foi dessa família que brotou a rachadura. Uma traição, sim. Mas também o constante “deixar para lá” dos seus planos, por Charlie e por você mesma.
O plano de fuga: um piloto de uma série de TV em Los Angeles – o lugar que você sempre quis voltar, o “seu cantinho no mundo”, como você mesma diz. É doído e cômico como nesse processo você ainda busca a aprovação dele, um cara que representa tanto: uma mistura de marido, chefe, referência na dramaturgia e pai do seu filho. Lembra quando você fala que releu o piloto da série como se fosse Charlie e acabou achando tudo horrível? Mas você segue em frente mesmo assim, com questionamentos, com dúvidas internas, eu imagino, mas se colocando, se expondo, se permitindo; tornando assim prioridade os seus desejos, desde o início dessa nova jornada.
“Eu poderia dirigir”, você fala para o grupo de executivos do seu novo programa logo nos primeiros ensaios. Porque com Charlie essa ideia era sempre posta para depois. Na próxima peça, no próximo ano… Eram as narrativas que insistiam em se repetir. Assim, esse tempo nunca chegou. É bonito perceber, então, que você não se deixará levar mais num caminho sem expor e lutar pelos seus desejos.
Lembrei de Glorinha e de Cabral, no filme Separações, aquele do Domingos Oliveira. Realidades tão diferentes, mas com algumas semelhanças identificáveis nas relações de vocês. Ali, também um casal de teatro, ali também um marido “gênio” e uma mulher que segura a onda por trás das cortinas. Lá também há ruptura, ainda que com um reencontro no final. Lá ainda existia um espaço para a comunicação, para ajustes e para uma casa e intimidade compartilhadas.
Para você, Nicole, o copo já tinha transbordado. Não havia mais espaço nem para a última gota d’água. Como musicou Chico Buarque para outra dramaturgia:
“Deixe em paz meu coração | Que ele é um pote até aqui de mágoa | E qualquer desatenção, faça não | Pode ser a gota d’água”.
E por falar em músicas e musicais, é contundente o recado que o filme passa com as interpretações – do mesmo musical “Company“, vale dizer – sua e de Charlie. Enquanto você canta, juntamente com sua mãe e irmã, “You could drive a person crazy“, ou seja, você pode levar uma pessoa à loucura, e finaliza com a frase que em português seria algo como “Bobby é meu passatempo e eu estou desistindo dele”; Charlie interpreta “Being alive“, num processo quase de reconhecimento do que vocês tinham e de aceitação da separação.
Separação que, quem sabe, poderia ter sido revertida. Quem sabe se Charlie tivesse abraçado com alegria o seu novo projeto da série de TV, quem sabe se ele tivesse nesse último momento mostrado que os seus desejos tanto de seguir um caminho autônomo profissional como o de ir fisicamente para o seu “canto no mundo” fossem válidos, o copo poderia ter desafogado um pouco. Mas essa não foi a história de vocês. A comunicação já tinha sido esquecida. A saída, então, foi um avião que levou você e Henry para o outro lado do país.
Assim, entram advogados, e uma dor imensa de uma nova dinâmica de dois pais que amam seu filho, que o querem bem, que cuidam e que brincam. Mas que agora dividem dias, noites e feriados com essa criança, com percentuais desiguais de tempo com a cria para agradar vitórias dos advogados de um lado ou de outro.
Mas não teria uma saída melhor, Nicole? Vocês não tinham combinado de não terem advogados? E você tinha que sair assim levando seu filho sem voltar atrás? Ah, Nicole, que estranhamento que tive ao ver você tomando essas decisões. Porque, no fundo, me perguntava: mas não dava para ficar lá, para, assim, facilitar a vida do seu filho? E depois, compreendi. Porque era para o Charlie, mais uma vez, que você estaria “facilitando”, a revelia dos seus interesses, e até dos de Henry, que fica de fato tão feliz em Los Angeles, com os primos e a nova vida. Quando compreendi me senti boba por não ter entendido o seu lado logo de cara, por não ter percebido o seu sufocamento, a sua anulação. Me senti boba por simplesmente ter normalizado a sua situação naquele casamento, na qual havia um protagonista e você era coadjuvante.
Em um único momento em que vocês realmente tentam conversar, sem mediações, o que aparece é raiva, rancor, choro e gritos. Não dava mais. Você já sabia.
“Agora, seu cansaço do final do dia tem como origem o trabalho e os esforços satisfatórios, não o fato de viverem enclausuradas num relacionamento, num emprego ou num estado de espírito pequenos demais. Elas sabem instintivamente quando as coisas devem morrer e quando devem viver; elas sabem como ir embora e como ficar” (1).
Você vai tomando suas difíceis decisões e Charlie as dele. E, mesmo sem um reencontro romântico entre vocês, vislumbro, e fico feliz, com o realinhamento de perspectivas, de planos e, diria até, de amor; daquele amor que você escreve lá no começo em sua carta, aquele amor que nunca acabaria. Afinal, família vai além das paixões. O que fica são os laços daqueles que lutam para manter o respeito e o carinho. E que sorte tem Henry por ter dois pais que, mesmo se perdendo, souberam encontrar o caminho de volta – de si mesmos e, assim, uns dos outros.
Referência:
(1) ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Tradução: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro, Rocco, 2018.
História de um casamento
História de um casamento, escrito e dirigido por Noah Baumbach, é, na verdade, a narrativa sobre o fim de um casamento, sobre o divórcio de Nicole (Scarlett Johansson) e Charlie (Adam Driver). O filme concorre a seis Oscars: Filme (Noah Baumbach e David Heyman), Ator (Adam Driver), Atriz (Scarlett Johansson), Atriz Coadjuvante (Laura Dern), Trilha Sonora (Randy Newman) e Roteiro Original (Noah Baumbach).
Uma resposta em “Carta para Nicole | História de um casamento | Cartas para elas”
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