Rosa,
Você caminha pelas relações numa busca pelo o que é verdadeiramente seu. Por isso, não há um aprofundamento em nenhuma delas. Passamos por elas. O que importa é você, o que você doa e o que você recebe de cada uma. Estão lá os homens que orbitam a sua vida. Pai, pai biológico, irmão, marido e amante. Cada um parece trazer mais vazios do que preenchimentos. “Entre aquela tribo de homens amontoados na psique da mulher, cujos membros são chamados pelos junguianos de animus” (1).
“Não brinquem com os fantasmas – fantoches – do meu pai”, você fala para as suas filhas, confundindo palavras e revelando sentimentos. Os homens de sua vida parecem mesmo etéreos, mas você tenta, não é, Rosa? Você tenta alcançar as verdades, ou pelo menos, versões delas. Você está cansada do que é superficial e da farsa. Diferente do seu pai, que desvia da verdade deliberadamente, porque é assim que ele sabe viver. Você, Rosa, cutuca as histórias, as suas histórias, sem medo do que pode descobrir. Ou melhor, com medo sim, mas sem desviar o olhar desses monstros escondidos e empoeirados dentro de nós.
Você cansou da cantada óbvia e de quem quer definir você em um aforismo bonitinho, mas simplista, mesmo que essa definição venha em um embrulho com uma bandeira interessante, como “feminista erótica de all star azul“.
As relações com as mulheres são intensas e contraditórias – mãe, filhas e irmã. Do susto das revelações da primeira, surge uma convivência que ganha força e companheirismo. Que bom ver o seu entendimento da importância do sapato vermelho e dos dois cigarros por dia. Que bom ver você agradecer a sua mãe, assim como se não fosse nada, por ela ter levado você ao show da Rita Lee. Se “viver é melhor que sonhar”, você traz da memória uma vivência compartilhada e agradece por isso. É como se você, enfim, entendesse que o que fica das relações são esses momentos de entrega, de partilha e de aprendizado. São esses momentos que, ao compartilharmos com quem nos acompanha de perto, acabam ajudando a nos construir. Carregamos, Rosa, um pouquinho de nossos pais, de nossos irmãos e de nossos filhos conosco.
Deve ter sido duro encarar a comparação da sua relação com sua mãe e da sua com sua filha mais velha. É preciso romper esse ciclo de desconhecimento e afastamento entre mãe e filha, Rosa. E você compreende isso. Em relação à Caru, sua irmã, ouça o seu pedido, e deixe ainda mais a caretice de lado.
Sua mãe aconselha você a aprender a transgredir! A compreensão do que é transgressão para você, Rosa, é o que faz você achar o seu caminho. Se para sua mãe, foi o encontro vivido em um congresso em Cuba, para você parece ser algo ainda mais íntimo – profundo e banal ao mesmo tempo.
Na sua trajetória, você oscila entre a exterioridade e a interioridade e, nesse caminho, vai rompendo barreiras imaginárias dos dois espaços. No lado de fora, você deixa o seu peito livre no espaço público encarando as possibilidade de liberdade e igualdade de gêneros, por mais que ainda sejam conceitos distantes em nossa sociedade. Em casa, você joga seu all star no lixo, encara o seu marido e revela os seus sentimentos por outra pessoa.
No espaço da casa materna, com suas plantas e livros, também está uma parte de sua história. E é ali que podemos sentir uma transformação: do almoço familiar inicial tão cheio de rixas e alfinetadas, presenciamos um momento que você compartilha com suas filhas, na experiência de uma rotina cotidiana – que é regar as plantas – mas tão cheia de hereditariedade e significação. Na casa, “não apenas as nossas lembranças, mas também os nossos esquecimentos estão aí ‘alojados'” (2), já bem falou Bachelard.
Então, Rosa, às vezes, a maior “transgressão” pode ser banal, cotidiana, porém, libertadora. É preciso, para isso, enfrentarmos e inclusive atendermos ao chamado dos nossos medos. Transgredir, assim, pode ser ir de bicicleta com as filhas para escola ou, simplesmente, falar a verdade. E é, assim, Rosa, que você pode criar a sua Nora, seu desfecho e suas reticências depois do fim. Até porque quem escreve agora é você.
Como nossos pais (2017), de Laís Bodanzky
Carta para Rosa (personagem de Maria Ribeiro)
Referências:
(1) ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Rocco, 2018.
(2) BACHELARD, Gaston. “A poética do espaço”. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
4 respostas em “Carta para Rosa | Como nossos pais, de Laís Bodanzky | Cartas Para Elas”
[…] Quem também escrevia textos corporativos antes de escolher e de priorizar a sua arte era a Rosa, do filme Como nossos pais. A dramaturgia dela ficava na gaveta, sendo desenvolvida apenas quando […]
[…] projeto Cartas para Elas começou a partir de uma grande vontade de conversar com Rosa, personagem interpretada por Maria Ribeiro no filme brasileiro Como nossos pais, dirigido por Laís […]
[…] – velhice, e “As melhores coisas do mundo” (2010) – adolescência e “Como nossos pais” (2017) – vida […]
[…] Carta para Rosa […]