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Debate no Festival Curta Brasília: Cinema em gênero, número e grau

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No último sábado, dia 17 de dezembro, a 5ª edição do Curta Brasília – Festival Internacional de Curta-Metragem promoveu, no salão do Cine Brasília, o debate “Cinema em gênero, número e grau”. Com Ana Arruda na mediação, a roda de conversa contou com Maeve Jinkings, Anna Muylaert, Vera Egito e Yasmin Thayná.

As falas foram conectadas e complementares, avançando a narrativa numa cadência de desvelamento do machismo e do racismo de nossa sociedade, vivenciada também no setor audiovisual.

Anna Muylaert: a quebra do teto de vidro

Anna Muylaert rompeu o “teto de vidro” ao alcançar o sucesso com o filme Que horas ela volta?. Rompeu e saiu ferida, porém fortalecida. Foi atacada por um ano, conforme relato da diretora. Mulheres podem até trabalhar e ter algum reconhecimento, mas não o sucesso comercial. Apresentando o filme no Festival de Sundance, em 2015, a cineasta conversou com a programadora do evento, Caroline Libresco, sobre temas que perpassavam os filmes com recorrência. Libresco respondeu: “a  mulher, no mundo inteiro, não aguenta mais sexismo”.

Em Berlim, Que horas ela volta? recebeu o prêmio da Mostra Panorama, foi vendido para vários países e “passou a ter valor”. A partir deste ponto de virada, a cineasta sentiu as consequências de ter quebrado o tal “teto de vidro” – foi boicotada, atacada, tratada como “criança” ou “café com leite”.

Nas palavras da diretora, era “como se o filme que eu fiz não fosse meu, porque já que ele fez sucesso não pode ser da mulher. Mesmo tendo sido escrito, dirigido, co-produzido por mim, na hora que entra o dinheiro, a mulher é retirada. É o tal ‘teto de vidro’”.

Ainda em 2015, em uma apresentação do filme em Recife (PE), na Fundação Joaquim Nabuco, dois cineastas homens – Claudio Assis e Lírio Ferreira – conturbaram e criticaram a sessão e o debates com discursos sexista, gordofóbico e homofóbicos. Desse caos, Anna Muylaert definiu: “o homem tem dificuldade com o protagonismo da mulher” e, daí, os temas se revelaram e se abriu um amplo debate em nível nacional, no setor audiovisual, sobre o machismo na área.

Atos pontuais, decorrentes do sucesso de um filme dirigido e protagonizado por mulheres, descortinou o sexismo no cinema brasileiro. Mas, desde então, não se pode mais ver, entender ou aceitar os mesmos paradigmas.

Maeve Jinkings: troca o gênero

Maeve Jinkings começa a sua fala descrevendo um estranhamento que passava em momentos de sua carreira que ela ainda não conseguia traduzir. Era machismo! E o lugar de agir foi tomando espaço em sua trajetória. A atriz, inclusive, aponta que algumas experiências de filmar com diretoras mulheres, como aconteceu com Renata Pinheiro, em Amor, Plástico e Barulho, trouxe outra perspectiva para sua carreira, “era uma outra forma de lidar com o feminino, era como se as barreiras viessem diluídas, era outro grau de entendimento”.

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Maeve Jinkings em Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro

A filmagem de Boi Neon, de Gabriel Mascavo, também foi um marco para a atriz. O filme, que se propõe a “borrar as margens de gênero”, a fazia pensar em algumas escolhas para a sua personagem, escolhas que a incomodavam. Ela resolveu tomar uma atitude e expor suas posições para o diretor. Na ocasião,  sentiu “o outro” interessado na sua fala e conseguiu ter respostas às questões. Inclusive com novas cenas da Galega, a personagem de Maeve Jinkings, com a sua filha, representada pela atriz Alyne Santana.

A personagem da filha de Maeve no roteiro, na verdade, era um menino. Não se encontrou o ator, mas uma atriz, o que trouxe outra camada ao filme. Uma menina criada num lugar tremendamente hostil para as mulheres, o ambiente das vaquejadas. Para a atriz, essa questão da possibilidade de troca virou uma “tática de guerra”: muda o gênero, se não há mulher no seu filme, muda o gênero de algum dos homens. Após a “tomada de ação” em Boi Neon, Maeve percebeu a importância do ator nesta construção. Ela afirma: “eu entendi que eu sou feminista e que eu preciso articular isso, eu preciso falar isso, eu preciso estimular isso”.  

Vera Egito: teste de Bechdel

Vera Egito começa a sua fala provocando os cineastas presentes a pensarem no Teste de Bechdel ao realizarem os seus filmes. Já falamos aqui sobre esse teste, que tem como premissa a resposta positiva a três perguntas: (1) Existem duas mulheres – com nomes – no filme? (2) Elas conversam entre si, (3) sobre qualquer coisa que não seja homens?

“Então, cineastas aqui presentes, homens e mulheres, o filme de vocês responde a essas três perguntas. Então, galera, vamos exercitar, porque [se não responde] está machista. Porque mulheres falam sobre outros assuntos que não são homens, falam com outras mulheres. A sua personagem feminina tem que ter nome, sobrenome, tem que ter uma inspiração, uma questão. Se é uma coadjuvante – também é um papel importante – que se pense nessa coadjuvante como coadjuvante e não como um enfeite”, pontuou Vera Egito.

A cineasta vai além e coloca em questão o seu privilégio de mulher branca. “Nos meus três filmes, os três com protagonismo feminino, nenhum tem sequer um ator ou atriz negro. E eu aprendi a ler isso há pouco tempo e eu me assusto, e me envergonho, e fico indignada comigo mesma de nunca ter atentado para isso, num país que tem 70% de negros”.

Vera Egito ainda faz uma contundente defesa do feminismo “generoso”, que entende os privilégios de cada classe, de cada cor, de cada nacionalidade. Como filha de feminista, entende que a mulher que foi ensinada a “lavar a louça para o irmão” pode demorar mais a se empoderar, mas que é preciso incluir essa mulher. Coloca em enfrentamento também o posicionamento dos homens, lembrando que “reagir a agressão faz parte também de não se irmanar com os agressores, porque se você silencia, você se irmana”.

Vera Egito finaliza: “poderíamos falar dessa estúpida retórica por mais zil anos”. E vamos ou até que mudem todos esses paradigmas!

Yasmin Thayná: o cinema é social

Yasmin Thayná traz, e pontua logo no início de sua fala, a dimensão racial e social à roda, até porque, como a cineasta mesmo afirma, falar sobre questões raciais, econômicas e sociais é falar também de cinema. “Se a gente tem uma linguagem, se as escolas de cinema onde a gente aprende, se os filmes, se toda a estrutura e a cadeia produtiva vão contra a isso que estamos falando, então falar ‘disso’ é falar também de cinema”.

A diretora pontua a importância dos processos curatoriais de festivais e mostras para a promoção dessas mulheres que são invisibilizadas, como Adélia Sampaio, que foi por muito tempo apagada da nossa historiografia cinematográfica. Hoje, felizmente, como coloca Thayná, estamos em um momento de revalorização dessa primeira diretora negra de longa-metragem do Brasil. Adélia Sampaio fez parte do Cinema Novo, realizou diversos filmes, inclusive o primeiro filme nacional sobre a dimensão da mulher lésbica – Amor Maldito.

A diretora também contou sobre o processo de realização – que durou três anos – e de inserção no circuito de festivais do seu curta-metragem KBELA. O filme foi feito com mulheres negras e sobre mulheres negras, com histórias muito parecidas. “Triste que a gente se encontre na dor”, afirma Yasmin, mas contrapõe a isso a sua vontade e necessidade de falar sobre felicidade também dessas mulheres e desse universo. O curta-metragem foi rejeitado no circuito de festivais, conta a diretora, porém, foi crescendo de baixo para cima, sendo exibido em escolas, praças e agora está tendo o reconhecimento das mostras de cinema.

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Yasmin Thayná também é a criadora da plataforma Afroflix, que tem o objetivo de promover e dar visibilidade aos profissionais negros do audiovisual – para que tantas Adélias desse Brasil não entrem no apagamento na nossa história. Leia mais sobre a plataforma e as mulheres diretoras presentes no serviço aqui.

A cineasta finaliza a sua fala trazendo as ideias da Afroflix, de promoção dos cineastas negros, e sobre a importância dos tempos de pausa e de ação, de culpa e de cura – como na capoeira, que se tem os tempos de ginga e os tempos de entrar na roda e na luta. Confira!



Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

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