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Carta para Cassandra (Liniker) | Manhãs de setembro | Cartas para Elas

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Manhãs de setembro

Cassandra,

Depois de 30 anos, dois meses e 19 dias, você conquistou o seu cantinho. É seu, só seu, não importando as dimensões. Você abandonou o sofá da amiga e embarcou nessa aventura de ser dona do seu próprio habitat. Nem com o seu namorado você quis compartilhar aquela primeira noite. Justíssimo, Cassi. Você não quer dormir de conchinha, quer sentir aquela cama só para você. Só você sabe as dores que passou para chegar até ali e alcançar essa conquista tão significativa. 

Todas queremos uma casa, um abrigo, um lugar nosso no mundo, com nossas fotos na parede, objetos pessoais nas estantes e a música que nos inspira tocando pelos cômodos. Isso é autonomia. Porém, o cheiro de tinta fresca leva você mais uma vez para o sofá de Roberta. A sua kitnet precisa esperar uma noite a mais para receber você. 

Na manhã seguinte, enquanto você admirava a sua casa e a tornava ainda mais sua com Vanusa tocando na vitrola, a campainha toca. Me conta, Cassandra, como foi encarar pela primeira vez os olhos infinitos de Gersinho? Que confusão passou pela sua cabeça? Como foi saber que você tinha um filho? 

Agora, pense comigo, Cassandra, se você sozinha precisou de mais de 30 anos para conseguir o seu lar, imagina como foi para Leide nesses últimos 10 anos? Imagine o que é dormir em um carro quebrado com seu filho? 

Quando o barco da sua vida parecia entrar em um mar calmo, raios e trovões apareceram no céu, fazendo a maré responder à altura. Balançou, mas você a princípio ficou ali imóvel, decidida a não se abalar pelo movimento do destino. Mas quando o destino nos agita, só temos duas opções: ou a gente se adapta ou a gente é arrastada pelas forças da deusa Fortuna. É assim que é a vida, não é? Resistência ao acaso só nos gera mais obstáculos…

Você realmente acreditou que ficaria alheia a um filho? Um filho que ainda tem que aprender, com toda a gentileza e a inocência, que, ao encontrar o pai depois de mais de 10 anos, o descobriria diferente do que imaginava. Mas afinal quando é que a vida nos entrega de presente o esperado? É daí que as histórias de Gersinho, de Leide e a sua começam a tomar rumos que parecem uma luta por afeto e por liberdade. Porém, para conseguir afeto e liberdade nas situações difíceis e intrincadas de vocês três, é preciso apoio! É preciso, Cassandra, criar possibilidades de família que abracem todas as realidades, inclusive a sua. Por que não? 

Respeito o seu tempo de reticências em relação a uma realidade que acaba de se apresentar para você. Leide aparece com Gersinho quando o menino está com mais de 10 anos. Ela até solta que você “pode fazer as contas”, mas talvez nem precise, sinto que você já sabe. Já se identifica com aquele menino que, de pés descalços, busca com os olhos se entender no mundo. 

Mas como você fica? Como você responde a essa situação depois de tudo que  passou para conseguir sustentar-se entre as entregas de motogirl – inclusive encontrando pessoas bem desagradáveis – e as noites na boate cantando as canções de sua musa Vanusa (mesmo quando deveria estar levantando o público com canções “lacradoras”). Ah Cassandra, mas seu coração é grande. Eu já sabia.

Cassi, quando você traz Paralelas, uma canção de Belchior, mas com a lembrança da gravação de Vanusa, você emociona. Vanusa lançou Paralelas como seu carro chefe em 1975, no álbum Amigos novos e antigos, mesmo antes da gravação pela voz do seu compositor. Desde então, Belchior viria a ficar conhecido em todo o Brasil. Assim, essa homenagem dupla à intérprete e ao autor da música comoveu essa cearense que mora longe de casa. Assim como você, Cassandra, também saí de casa em busca de não me perder de mim mesma. 

Quando você canta Paralelas, está em um ensaio acompanhada de Décio. Gersinho está com você e a escuta cantar pela primeira vez. Roberta tenta conversar com o garoto, mas ele para, ele escuta, ele concentra a atenção em você. Parece que ali ele entende o seu brilho e a sua vocação. Ele se orgulha de você. Cassandra, não sei se você viu o impacto desse momento. Foi um furacão. Foi o entendimento de seu filho de quem você é: mulher, determinada, cantora.

Mas no caminho que tomou para se tornar essa mulher, talvez, como cantou Vanusa em Manhãs de Setembro, você “se guardou na indiferença”. Por vezes, Cassi, você parece lutar contra a sua empatia. Como quando você pára e olha os pés de Gersinho sem sapatos, mas joga para a mãe a responsabilidade.

Você tem fortes relações de amizade: é notável como Roberta acolhe você, mesmo com críticas; Pedrita está presente mesmo quando não aparece, sendo a referência da cantora que faz sucesso na boate; e o casal Décio e Ari são puro amor. Há também Ivaldo que, mesmo sendo casado, compartilha com você momentos de afeto e de prazer. Desse último, não sei o que será! Você sabe? Me conta! A questão, Cassandra, é que parece que para além desses, você se fechou. Nada, nem ninguém pode abalar seu muro erguido (que protege suas escolhas).

Liberdade, porém, não é isolamento. Liberdade é construir pontes e não muros. Liberdade não é negar os laços pessoais que a vida nos entrega. Liberdade é saber que escolhas devem ser feitas. E às vezes liberdade é dizer sim para uma família inesperada, com o compartilhamento da maternidade de um menino com olhos infinitos e talento para a matemática. Gersinho, Leide e você merecem esse apoio e esse amor. E isso também é liberdade.

Assim, o carro imóvel de Leide, o carro que era a morada dela e de Gersinho, leva agora vocês para novas possibilidades. O carro – sobre o qual ouvimos você cantar na letra de Paralelas – é o habitat dessa nova realidade que se apresenta. “Dentro do carro, sobre o trevo a 100 por hora | Oh, meu amor! | Só tens agora os carinhos do motor…”. Me lembrei também do filme Terra Estrangeira, que finaliza com um carro seguindo uma estrada. Nesse, porém, é um caminhar para a desesperança. Agora, recebo essa nova imagem como uma alternativa de afeto, de liberdade e de apoio, e você a confirma com um leve sorriso no canto da boca.

Manhãs de setembro

Manhãs de Setembro (2021)

Carta para Cassandra, interpretada por Liniker

Na série original da Amazon Prime, conhecemos a jornada de Cassandra, uma mulher trans que deixou sua cidade determinada a ser livre e viver com independência, mas é confrontada por um filho que não conhecia.

Roteiristas:  Josefina Trotta, Alice Marcone, Carla Meireles e Marcelo Montenegro.

Diretores: Luis Pinheiro e Dainara Toffoli

Elenco

Cassandra: Liniker

Leide: Karine Teles

Gersinho: Gustavo Coelho

Ivaldo: Thomas Aquino

Roberta: Clodd Dias

Aristides: Gero Camilo

Décio: Paulo Miklos

Pedrita: Linn da Quebrada

Manhãs de setembro

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

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