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Mulheres negras em 90 anos de Oscar: invisibilização institucional

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A premiação do Oscar existe desde 1929 e é uma das cerimônias de maior destaque da indústria cinematográfica. Ao longo dos anos, tem-se levantado várias discussões sobre a falta de diversidade nas indicações ao prêmio.

Apenas em 1940 uma mulher negra, Hattie McDaniel, recebeu o prêmio pela primeira vez e, infelizmente, poucas vieram depois dela.

Hattie McDaniel em E o vento levou

Hattie nasceu em 1895, no Kansas, filha de pais haviam sido escravizados. Foi uma das primeiras profissionais negras a trabalhar em rádio, recitando poemas e gravando canções que ela mesma escrevia.

Aos 36 anos, mudou-se para Los Angeles com a família e trabalhou em diversos filmes – sem aparecer nos créditos de grande parte deles. Hattie interpretou dezenas de empregadas domésticas ao longo da carreira e seu papel de maior destaque foi Mammy, uma escravizada no longa-metragem E o vento levou (1939). O filme foi considerado um clássico e recebeu 10 estatuetas no Oscar. Apesar disso, foi acusado de romantizar a escravidão e perpetuar estereótipos racistas.

Cabe destacar que a própria personagem interpretada por Hattie é um arquétipo do sul dos EUA popularizado no século 20: as Mammies, mulheres negras que trabalham em casas de famílias brancas, completamente dedicadas a criar as crianças brancas com todo o carinho e subserviência esperados delas, enquanto seus próprios filhos passam os dias com outras pessoas.

A figura da Mammy tem uma caracterização própria: mulheres gordas, de seios grandes, com rostos bondosos, lenço cobrindo o cabelo, ótimas cozinheiras, maternais, muito leais e sem vontades ou narrativas próprias. Essa figura caricata da mulher negra submissa e satisfeita em servir os brancos aparecia em propagandas e filmes do século passado, mas ainda influencia a criação de personagens negras (quem lembra da tia Nastácia?).

tom e jerry

E o vento levou se passa em Tara, uma região rural da Geórgia, e acompanha a vida da família do rico proprietário de terras Gerald O’Hara, especialmente de sua filha Scarlett, durante o período da Guerra Civil Americana. O filme já foi comparado ao longa O nascimento de uma nação (1915) – considerado um dos filmes mais racistas de todos os tempos – e duramente criticado por mostrar a escravidão de forma idealizada e por seus personagens negros servis e nostálgicos.

O filme foi baseado no livro de Margaret Mitchell e nos últimos anos teve uma prequência (que conta o que antecedeu aquela história) autorizada pela família da escritora: A Jornada de Ruth. O novo romance tem Mammy como protagonista e conta a história de quando ainda não era uma Mammy e sim Ruth. A garotinha órfã de São Domingos foi levada para a casa de um capitão, onde passou a ser a “companhia” e o “ombro amigo” de sua esposa (outros termos para escravizada que é “quase da família”). Assim, convivendo com quem um dia se tornaria a família O’Hara de E o vento levou, criando seus filhos e seus netos, Ruth tornou-se Mammy.

Foi com esse papel que, em 1940, Hattie McDaniel tornou-se a primeira mulher negra a receber um Oscar. O prédio onde a cerimônia aconteceu não aceitava a presença de negros, e a atriz foi obrigada a esperar no fundo da sala, separada do restante do elenco, mesmo já sabendo que havia vencido.

A vitória foi controversa e, apesar de importante, Hattie foi severamente criticada por parte do movimento negro da época por ter participado desse projeto. Acusada de colaborar com o sistema racista promovido por Hollywood, ela afirmou que não pediria desculpa pelos papeis que desempenhou e respondeu:

“Que papel esperavam que eu desempenhasse? A mulher de Rhett Butler (Clark Gable)? (…) Prefiro interpretar uma criada e ganhar 700 dólares por semana do que ser uma criada e ganhar sete dólares”.

hattie_mcdaniel estatuetas

Para além dessa questão, seu Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante foi um importante marco e, infelizmente, podemos hoje avaliar quão raro. Hattie faleceu 12 anos depois de cancro de mama, com sua estatueta (que havia doado a uma universidade) perdida e sem sepultamento no Hollywood Cemetery, como desejava. Não chegou a ver Dorothy Jean Dandridge ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz em 1954 por sua atuação em Carmen Jones (o prêmio foi para Grace Kelly). Nem o primeiro ator negro ganhar um Oscar em 1964 (Sidney Poitier por Os Lírios do Campo).

Apenas em 1991 outra atriz negra recebeu o Oscar na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante quando Whoopi Goldberg foi premiada por seu trabalho em Ghost. E somente em 2002, 62 anos depois do prêmio de Hattie, uma mulher negra receberia pela primeira vez (e única até agora) o prêmio principal de atuação.

Halle Berry foi premiada por seu papel em A última ceia. No filme ela vive Letícia, viúva de um condenado à pena de morte. Na prisão, de forma inusitada, ela se aproxima de Hank, um carcereiro racista e conservador que lida com suas próprias tragédias familiares.

Ao receber a estatueta, Halle Berry ficou justificadamente emocionada. Foram 74 anos de Oscar e centenas de indicadas para que a primeira mulher negra conseguisse o prêmio de Melhor Atriz. “Esse momento é tão maior do que eu”, disse a atriz em seu discurso de agradecimento.

“Esse momento é para Dorothy Dandridge, Lena Horne (1ª atriz negra a ter um contrato fixo com a MGM, em 1943), Diahann Carroll. É para as mulheres que estiveram ao meu lado, Jada Pinkett, Angela Basset, Vivica Fox, e é para todas as mulheres de cor, sem nome e sem rosto, que agora têm uma chance. Porque a porta hoje foi aberta”.

Infelizmente, o entusiasmo da atriz não incorreu em uma mudança real como ela esperava. Dezessete anos depois e ela continua sendo a única mulher negra a ganhar a estatueta de Melhor Atriz em quase um século de Oscar. Anos depois de receber o prêmio, Halle Berry disse à imprensa que se sente muito frustrada porque realmente acreditou que aquele momento havia significado uma mudança, mas que hoje acha que não significou nada.

Na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante, outras 5 mulheres negras receberam o prêmio: Jennifer Hudson (Dreamgirls), em 2007; Mo’Nique (Preciosa: Uma história de esperança), em 2010; Octavia Spencer (Histórias Cruzadas), em 2012; Lupita Nyong’o (12 anos de escravidão), em 2014; e Viola Davis (Fences), em 2017.

Viola Davis mostra sua estatueta do Oscar e sorri.

Além da participação de atrizes negras ser esporádica na premiação, as duas categorias relativas a atuação são praticamente as únicas que resultaram em prêmios para mulheres negras na história do Oscar. A única mulher negra (sendo considerada afro-latina) a receber um Oscar em alguma das outras categorias foi Irene Cara (sem considerar os prêmios paralelos, como o Oscar Honorário de Cicely Tyson e o Prêmio Humanitário Jean Hersholt de Oprah Winfrey).

Irene Cara é uma cantora americana (filha de pai porto-riquenho e de mãe cubana), que ganhou o prêmio de Melhor Canção Original por What a feeling, do filme Flashdance, em 1984. Ela é até hoje a única mulher negra a ganhar um Oscar, sem ser nas categorias de atriz principal ou coadjuvante.

Em 2017, Joi McMillon tornou-se a primeira mulher negra a concorrer na categoria de Montagem, com o filme Moonlight. O prêmio foi para John Gilbert de O último homem. Em 2018, Dee Rees foi a primeira roteirista negra a ser indicada a Melhor Roteiro Adaptado pelo filme Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi (do qual também é diretora). Perdeu para James Ivory de Me chame pelo seu nome.

Chegamos à edição de 2019 com pouquíssimas mulheres negras indicadas, levando em conta todas as categorias e os mais de 200 indicados. E podemos acompanhar mais uma primeira vez: Hannah Beachler é a primeira mulher negra a concorrer na categoria Direção de Arte, por Pantera Negra.

Ainda da equipe de Pantera Negra, Ruth E. Carter concorre este ano na categoria de Figurino. Já concorreu outras duas vezes, com Malcolm X (1992), de Spike Lee, e Amistad (1997), de Steven Spielberg. E Regina King concorre a Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel em If Beale street could talk, com o qual venceu o Globo de Ouro e o Critics’ Choice Awards de 2019. A atriz tem em seu currículo três Emmys, sendo dois por American Crime, e um, do ano passado, por Seven Seconds. Agora torcemos por um Oscar para se juntar a essa coleção.

Ruth E. Carter e Hannah Beachler

Caso Ruth e/ou Hannah levem a estatueta este ano, se unirão a Irene Cara, quebrando um jejum de 35 anos. Ficamos na torcida, mas já tendo aprendido com Halle Berry que, apesar de merecer comemoração, as portas dificilmente se abrem. Cada fresta parece ter que ser aberta a fórceps.

Gif de Halle Berry em seu discurso de agradecimento. Ela repete a palavra obrigada e pula levantando a estatueta do Oscar.

Por Luciana Rodrigues

É formada em Audiovisual e em Letras Português. Uma brasiliense meio cearense, taurina dos pés à cabeça, apaixonada pela UnB, por Jorge Amado e pelo universo infantil. Aprecia o cult e o clichê, gosta de Nelson Pereira dos Santos e também gosta de novela. E, apesar de muitos dizerem o contrário, acha que essa é uma ótima combinação.

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