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O Novelo: os nós e os laços entre cinco irmãos

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O Novelo cinco irmãos

O filme O Novelo foi roteirizado por Nanna de Castro e dirigido por Cláudia Pinheiro e teve sua primeira exibição no dia 15 de agosto de 2021 no Festival de Cinema de Gramado. O filme foi baseado na peça homônima de Castro e foi interpretada por cinco homens brancos. Agora na adaptação para o cinema, o elenco é de cinco homens negros: Nando Cunha interpreta Mauro; Rocco Pitanga é Cicinho; Sérgio Menezes é o Zeca; Rogério Brito é João; e o caçula dos irmãos, Cacau, é interpretado por Sidney Santiago Kuanza.

O universo de O Novelo é criado a partir das relações familiares desses cincos irmãos que tiveram que aprender desde muito cedo o que é abandono, morte e perseverança. Irmãos tão diferentes um do outro que nos dá aquela sensação familiar de não entender muito bem o que nos aproxima dos nossos irmãos, irmãs e pais, já que somos tão diversos e ao mesmo tempo tão iguais. 

Mauro está acostumado com a dor. É a dor no estômago, a dor do abandono, a dor agridoce da responsabilidade pelos irmãos. É ter sido sempre o mais velho que pegou para si o cuidado pelos irmãos após a morte prematura de sua mãe. Foi Mauro ainda criança quem esteve lá na maternidade com a mãe, Dona Alzira (Isabél Zuaa), recém-parida com Cacau no colo, percebendo ao anoitecer que seu pai não os buscaria. Ele precisa estar o tempo todo fantasiado: de pai, de irmão mais velho, de homem que aguenta tudo, que dá conta de tudo. 

Cicinho é o mais alto, mas não é o mais velho, veio depois de Mauro. Teve que buscar ajuda profissional em uma clínica para tratar sua dependência de álcool, que continua ali, com uma vontade latejando, seja para comemorar, seja para apaziguar o nervosismo e a saudade das duas filhas. Após a separação, Cicinho vai morar com Mauro e Cacau, na casa da infância e adolescência. Tenta dar jeito na casa, briga com os irmãos para mantê-la limpa. É o espírito de Dona Alzira ali, pertinho dele.

Zeca é advogado, bem-sucedido, rico. É bom no que faz. Não necessariamente advogando por causas justas, talvez por isso seja bom no que faz. Leva no bolso um pouco de cocaína. Mas não é a droga que alimenta a esperança que tem em ver o pai de novo. Com seis filhos para criar, Zeca é o que se posiciona de machão, mas é na cartomante que busca respostas para o paradeiro do pai que tanto quer ver.

João é escritor, psicanalista, conhecido no âmbito acadêmico. É doutor, é bem sucedido também. Com um toque de pedantismo, João escuta vinil de música clássica, assim como aprendeu com o pai. Namora Oliver, mas esse relacionamento não é exposto para os irmãos. É pé no chão e pensa que elaborar o luto é tarefa individual.

Cacau é o mais novo, é o sensível – que tenta explicar esse traço de personalidade “tentando” ser gay -, é ator. Namora Jaque, uma mulher com uma liberdade sexual que em determinados momentos o constrange. Não fala com Zeca há cinco anos, tentando resolver o que aconteceu entre eles de diversas maneiras. 

Esses cinco irmãos, tão diferentes, precisam lidar com feridas abertas para descobrir se o homem em coma na cama de um hospital é o pai que os abandonou há 30 anos. São poucas horas de um convívio intenso, com uma pergunta dilacerante no ar. Mauro, Cicinho e Cacau, por morarem juntos, criaram uma intimidade profunda entre eles – desde literalmente dividir o único banheiro da casa, até reclamarem um do outro sobre como organizam as tarefas domésticas. João se afastou dos irmãos há anos, não só pelo relacionamento que tem com Oliver, mas também por não se sentir pertencente àquela família. Zeca e Cacau não se falam, mas ainda assim Zeca manda dinheiro todos os meses para o irmão caçula.

Por terem vivido mais tempo com a mãe, os irmãos conseguem identificar um nos outros características de Dona Alzira em cada um deles. O pai é trazido em algumas lembranças específicas, jogadas e curtas. É o pai com a pipa, com o vinil, com o carro levando a mãe à maternidade. Dona Alzira sentada, grávida, fazendo crochê. Depois é Dona Alzira sentada, adoecendo, mas fazendo roupas de crochê para sustentar os filhos sem a presença do marido. 

No momento da morte da mãe, vem a lembrança de Mauro e Cicinho encorajando Cacau a terminar a primeira peça de tricô dele. Mauro era o responsável por cuidar da mãe adoecida. Após a morte de Dona Alzira é Mauro quem precisa decidir o que fazer com as roupas da mãe e como sustentar os irmãos mais novos. Mauro então trabalha e Cicinho cuida dos irmãos mais novos. As lembranças pincelam a narrativa trazendo os irmãos em diferentes idades – na infância e na adolescência – até o presente, na vida adulta. 

O Novelo crianças

Os irmãos, com a presença do abandono do pai, precisam então lidar com a morte da mãe. O luto é tratado de forma pragmática, tentam se virar como podem. A relação deles se intensifica, e Mauro é a figura de autoridade e de paternidade que foi exigida dele no redemoinho do sofrimento e do luto. Cada irmão conjectura sobre o abandono do pai, tentando justificar ou entender a decisão do homem que habita as lembranças escassas desses homens.

Apesar da reticência de João – que acha que os irmãos, não ele, precisam elaborar a perda do pai-, ele vai ao encontro dos irmãos em um hospital pequeno em uma cidade menor ainda. O homem no hospital tem o telefone da casa de Dona Alzira no bolso. Cicinho é o primeiro a ver, mas pelas regras do hospital só um pode entrar por vez. Não sabe se é o pai, mas parece que é. A ansiedade de rever o pai depois de tanto tempo, com a violência estampada no rosto do homem em coma, mexe com todos os irmãos.

Cada um lida com a dor de um jeito. Cada um tem a esperança do retorno, seja mais explícita como em Zeca, seja mais escondida, cheia de mágoa, como em João. Além de lidar com a incerteza da presença do pai, os irmãos precisam lidar com as versões adultas dos irmãos, com os ressentimentos, com os problemas, com a paternidade sem escolha de Mauro. No curto espaço de tempo que precisam esperar para que Mauro reconheça se é o pai ou não, os irmãos estão juntos, cada um em sua própria jornada de luto.

A família reunida de novo emociona Cicinho. Mauro se preocupa, já fez muito por todos, muito mais do que precisava. Zeca é uma pilha de ansiedade. João se aprofunda em seu silêncio. Cacau está confortável e feliz na presença dos irmãos. O abismo da diferença de expressar amor vai se abrindo cada vez mais entre os irmãos. A possibilidade do pai ali retoma feridas e os irmãos percebem a necessidade de pedir desculpas, retomar laços. E ali, no corredor do hospital, é possível observar as lembranças que cada um tem do pai. A dor e as mágoas aproximam os irmãos, eles se reconhecem um no outro.

O filme então é sobre homens expondo seus sentimentos, querendo proximidade com os irmãos que estiveram ali no abandono, no luto, no crescer com afeto fraterno. Para passar o tempo no hospital, Cacau traz uma sacola com agulhas e linhas de crochê para que os irmãos tricotem. Assim o tempo passa, a proximidade se faz presente, a lembrança da mãe vem à tona. A cena então é fechada nas mãos já adultas desses homens negros, tricotando a lã, os olhares trocados, as agulhas trabalhando, os sorrisos tímidos. As mãos de homens crescidos relembram o movimento afetivo do crochê. Estão juntos, finalmente, pelos fios do crochê, pelo caminho injusto da vida.

As mulheres na narrativa são recortes apresentados pelos homens, o foco da história é a relação entre os irmãos e como eles lidam com tantas feridas abertas. Lidar com os sentimentos que não são permitidos aos homens. A troca de abraços, de olhares, do pedido de desculpas, do amor carrega a intimidade e a fraternidade dos irmãos. Das despedidas apresentadas no filme, é aquela que não foi dada aos irmãos que mais os aproxima. 

O Novelo Cartaz

Por Risla Miranda

Brilha os olhos quando fala de direitos humanos e se vê um dia programando games. Discutir numa mesa de bar acompanhada de uma cerveja bem lupulada é o paraíso. Criatividade vai desde meme a criar estratégias de ação de projetos. Curtindo o rolê de contar histórias através de dados.

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