Sangue e água tem chamado atenção do público nas últimas semanas, desde a sua estreia em 20 de maio. Por conta de alguns acontecimentos (o assassinato de George Floyd nos EUA, os protestos e discussões que seguiram ao crime e o destaque ao movimento Black Lives Matter – Vidas Negras Importam), a série estreou em um momento em que o público está demonstrando maior interesse por conteúdos produzidos por artistas, intelectuais e ativistas negros.
Temos acompanhado muitas indicações interessantes de documentários e obras de ficção que tratam da violência sistemática contra a comunidade negra nos EUA, incluindo a atuação da polícia, o sistema judiciário e todas os fatores que envolvem o complexo industrial prisional.
Além da importância de discutir todas essas questões para compreender a história e as bases do racismo, é necessário também consumir em paralelo obras que mostrem a comunidade negra desvinculada das noções de violência e criminalidade. Em situações diversas, em histórias de sucesso, vivendo questões comuns do dia a dia.
Sangue e água
Nesse contexto, falamos aqui sobre Sangue e água, a segunda série original da Netflix na África do Sul (Queen Sono foi a primeira). Apesar de girar em torno de um crime, a obra o faz de forma diferente de como normalmente a mídia relaciona a criminalidade à comunidade negra. Sangue e água foi muito comparado à série espanhola Elite e a outras obras similares que retratam um crime e sua investigação, onde todos são suspeitos e novas pistas são descobertas a cada episódio.
Sangue e água foi dirigida pela sul africana Nosipho Dumisa e traz um elenco majoritariamente negro, com muitos atores estreantes. A história se passa na Cidade do Cabo e mostra uma África diferente da que muitos estão acostumados a imaginar.
A África do Sul é o segundo país mais rico do continente e é considerado o local com mais milionários. E é nesse cenário que se passa a história de Nosipho Dumisa: uma escola de elite onde estudam alguns dos jovens mais ricos de Capetown, herdeiros de grandes fortunas.
A protagonista Puleng Khumalo vem de uma realidade diferente, de outro bairro e outra escola. Sua família lida há 17 anos com o sequestro de uma bebê recém nascida. Phume é a irmã mais velha de Puleng e foi levada do hospital logo após seu nascimento. Seus pais, e especialmente sua mãe, nunca se recuperaram do acontecido e continuam em busca de pistas que possam levá-los de volta à sua primogênita.
Em uma festa de aniversário, um comentário sobre a semelhança entre Puleng e Fikile faz com que a protagonista suspeite que a jovem recém conhecida possa ser sua irmã desaparecida. Para investigar essa possibilidade, Puleng se muda para a escola Parkhurst, onde Fikile estuda, e tenta se aproximar dela e de seus amigos para descobrir pistas sobre o passado da adolescente que possam relacioná-la a Phume. Nesse processo, ela conhece muitas pessoas e passa por diversas situações que fogem de seu controle.
Cabe destacar que o roteiro foi inspirado em um acontecimento real que ficou famoso na África do Sul. Cassidy Nurse mudou para a escola Zwaanswyk High School, onde conheceu Miché Solomon, três anos mais velha. Todos comentavam sobre a semelhança entre as duas, o que fez com que elas se aproximassem e se tornassem amigas, sempre cercadas de brincadeiras sobre serem irmãs. Certo dia, as jovens tiraram uma selfie e Cassidy a mostrou para os pais. Eles ficaram instantaneamente alertas. A partir daí a investigação por uma bebê sequestrada 17 anos antes foi retomada e as famílias descobriram que Miché era Zephany Nurse, irmã mais velha de Cassidy levada da maternidade com três dias de vida.
Além desse mistério, Sangue e água aborda de forma paralela, em maior ou menor medida, várias questões interessantes, como pansexualidade; ética no jornalismo; tráfico humano; a cobrança de perfeição e suas possíveis consequências sobre adolescentes; dentre muitas outras.
Apesar da constante comparação com Elite, por ser uma série de mistério envolvendo a investigação de um crime e por se passar em uma escola de jovens privilegiados (com festas, sexo, álcool, corrupção e muitos segredos), é importante destacar uma característica que a diferencia de outras obras similares.
Sangue e água usa uma fórmula já bem conhecida, mas a apresenta com um elenco majoritariamente negro e com a África do Sul como cenário, e isso já transforma sua roupagem. Enquanto Elite, Gossip Girl, Riverdale, Pretty Little Liars, Rebelde, 13 reasons why e tantas outras trazem histórias muito similares, sempre contadas pelo ponto de vista de jovens brancos, Sangue e água utiliza uma narrativa conhecida e que faz sucesso para contar a história de jovens negros.
Não apenas como personagens coadjuvantes, como normalmente acontece nas séries americanas e europeias, mas ocupando todos os espaços. Nesse seriado, os personagens negros são protagonistas, antagonistas e coadjuvantes. Vivem romances, tomam boas e más decisões, e são complexos. São empresários, jornalistas, diretoras de escola, herdeiros de grandes fortunas, são julgados por crimes, mas também são os advogados e juízes dos casos. E isso faz toda a diferença ao assistir a uma série.
Mais uma vez: rivalidade feminina
Apesar dos diversos pontos positivos que a colocam em destaque dos demais programas, cabe apontar que Sangue e água acabou caindo em um padrão negativo costumeiramente trabalhado em fórmulas audiovisuais parecidas: a exploração da rivalidade feminina. Puleng e Fikile são como cão e gato. Uma hora se adoram e em outra são inimigas ferozes, alternando essa dinâmica diversas vezes ao longo dos seis episódios da primeira (e até agora única) temporada.
Foi criada uma rivalidade desnecessária entre as duas principais personagens da série, como forma de gerar algum tipo de tensão e para dificultar que Puleng descubra rapidamente o que deseja. Claro que isso poderia ter sido desenvolvido de alguma outra forma, mas as séries em geral, e especialmente as obras voltadas ao público adolescente, insistem em criar dinâmicas de competição, inveja e ódio, que normalmente resultam em atitudes desonestas para humilhar a rival perante todo o colégio, ultrapassando qualquer limite ético. E é óbvio que isso vai muito além da necessidade de criar dificuldades para a trama.
Basta ver a relação tóxica e perturbadora entre Serena e Blair, do amor ao ódio ao longo das seis temporadas de Gossip Girl; ou a briga ferrenha entre Mia e Roberta (de Rebelde); a competição extrema entre Nádia e Lucrécia (em Elite); ou mesmo entre Fikile e Wendy, outra dupla inimiga em Sangue e água. Disputas que contam com a divulgação de vídeos íntimos, agressão física e humilhação constante, em situações marcadas por maldade e falta de empatia. Situações que se repetem constantemente em obras voltadas para o público adolescente e jovem adulto e que possivelmente moldam em algum nível suas interações sociais, especialmente entre mulheres.
Ficamos na torcida para que uma segunda temporada seja confirmada e que haja espaço para construir relações saudáveis. Que, independente do que for descoberto na trama, Puleng e Fikile consigam desenvolver uma irmandade positiva, tão necessária nas obras audiovisuais e na vida real.
2 respostas em “Sangue e água | Puleng e Fikile: até quando a rivalidade feminina será a narrativa das mulheres?”
[…] Sangue e Água foi a segunda série original da Netflix na África do Sul e conta uma história baseada em um caso real. Ambientada na Cidade do Cabo, a trama acompanha a adolescente Puleng Khumalo, que teve uma irmã sequestrada na maternidade há 17 anos. Há quase duas décadas, a família convive com as repercussões desse crime, cada um afetado de uma forma diferente. […]
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