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Carta para Glorinha | Separações, de Domingos Oliveira | Cartas Para Elas

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Carta para Glorinha (Priscilla Rozenbaum) do filme Separações , de Domingos Oliveira.

Glorinha,

Depois de tantos pedidos de folga de Cabral, é você quem se encanta pela liberdade, pelo sonho de poder fazer as coisas de que realmente gosta e, enfim, conseguir entender-se profissionalmente sem trabalhar apenas com o marido. É você, Glorinha, que vive mais uma paixão intensa ao ponto de ter seu coração partido ao ter que aprender a se despedir de um amor para voltar para outro. Ah, Glorinha, você evoca Jesus e seus 40 dias no deserto para dar início ao seu caminhar independente. Uma folga épica que dura, na verdade, um ano. Um ano de seu triângulo amoroso, dividida entre Cabral e Diogo.

Já a satisfação de Cabral com a liberdade dura apenas uma semana. É, assim, que o amor de vocês inicia as etapas – narradas por Cabral – da aceitação dos pacientes terminais em relação à morte: negação,  negociação, revolta, aceitação e agonia ou estado de graça. Cabral fica entre a saudade e o desespero. Imediatamente após uma rápida vivência de sexo casual, Cabral inicia a sua negociação para tentar voltar com você. A ferramenta principal: a escrita de poesias. E quantos poemas você recebe, Glorinha? Na sua portaria, ao vivo, para membros de sua família. Poemas cheios de amor, mas também de dor e raiva.

Aquele homem que via lógica e razão na separação torna-se louco e sem mesura. Infelizmente, Glorinha, após o estágio de negociação, Cabral passa ao de revolta.  A sua poética, agora, é movida pela desilusão, pelo ódio.

O seu amor com Cabral me acompanhou por tanto tempo, Glorinha. Aquelas cenas internas, aquele amor com história de mais de 10 anos, os poemas, a separação e o retorno à casa. Queria te escrever uma carta e, assim, fui rever o filme que tanto me marcou, um filme que destoa da cinematografia brasileira e caminha para o cinema de intimidade, num tom menor, no qual a grande questão é o pequeno: são as relações – de amores e de amigos – e o cotidiano daquela “gente do teatro” carioca.

Agora, confesso, porém, que o “amor” de Cabral – em sua face de raiva e revolta com a separação, me surpreendeu. Negativamente. Como me chocou a saída fácil para te chamar de puta – quando era ele que tão insistentemente pedia “folga”. Mas quando é você que quer essa liberdade, Glorinha, o machismo aflora. Machismo de um homem culto e do teatro. Veja só! As insistências dele para o seu retorno também vão além do respeito, do aceitável.  

É apenas depois da viagem – com a sua ausência física do Rio de Janeiro – que Cabral parece colocar a cabeça no lugar, seguindo os seus insistentes pedidos, Glorinha. Pedidos para que ele voltasse a ser o homem por quem você se apaixonou. Pois você sabia, Glorinha, que Cabral ainda era uma possibilidade, a dúvida entre os dois amores persistia. Mesmo com a relação com Diogo e mesmo com as reações de Cabral.

Sabe o que eu mais gosto disso tudo, Glorinha?

Que é você quem decide o momento e o tempo da folga, da separação e do retorno. A escolha entre os dois amores é sua. É sua a decisão pelo amor que tinha uma história, uma história que você define como ainda válida de continuar. É você quem define o seu estado de graça, na sua casa, “onde e como o repouso encontra situação privilegiada”1, com Cabral descansando em seus braços.

Cena do filme Separações, de Domingos Oliveira

Separações (2003), de Domingos Oliveira.

Cabral (Domingos Oliveira) ama Glorinha (Priscilla Rozenbaum), mas não quer perder sua liberdade; quer, pelo menos mais uma vez, apaixonar-se. Cabral tem uma máxima: “é  melhor se arrepender de ter feito do que de não ter feito”, ensinamento que passa a sua filha, Júlia (Maria Ribeiro). Glorinha ama Cabral, mas está cansada dos  seus pedidos de “folga”. Ela também quer liberdade, não necessariamente a amorosa, mas, pelo menos, a independência profissional, já que está sempre trabalhando com o marido. Ricardo (Ricardo Kosovski), ex-namorado e, hoje, melhor amigo de Glorinha, está montando um teatro de revista do século XX, um projeto ambicioso, afinal, para Rick “teatro é coisa séria”. O novo diretor, que, segundo Cabral, ainda tem muito que aprender, mas tem um bom coração, está com duas namoradas:  a esotérica Maribel e a decidida Roberta. Glorinha resolve fazer a assistência de direção da peça de Ricardo, mesmo sem o aval de Cabral. Diogo (Fábio Junqueira), um arquiteto que se transforma em homem do teatro, junta-se ao projeto. Glorinha, agora, é quem pede folga a Cabral, folga de 40 dias, “como Jesus no deserto”. Nos bastidores da peça de teatro, Glorinha e Diogo apaixonam-se, estopim para o enredo da trama, puxado pelo triângulo  amoroso Cabral-Glorinha-Diogo.

Separações - Priscilla Rozenbaum

1 BACHELARD, Gaston. “A poética do espaço”. In: Os pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Por Lina Távora

É uma cearense que mora em Brasília, jornalista fora da redação, mestre em comunicação/cinema, feminista em construção, mãe com todo o coração e tem no audiovisual uma paixão constante e uma fé no seu impacto para uma mudança positiva na sociedade.

3 respostas em “Carta para Glorinha | Separações, de Domingos Oliveira | Cartas Para Elas”

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