Se você já assistiu à série A vida e a história de Madam C. J. Walker, percebeu que um dos pontos mais marcantes da obra é a disputa entre Sarah Breedlove e Addie Monroe (simbolizada por uma luta de boxe logo no início). Duas mulheres negras que tentam fazer sucesso com a venda de produtos para cabelos crespos e que competem entre si, dividindo forças.
O grande discurso da protagonista Sarah é que deseja fazer produtos que ajudem a comunidade negra a se fortalecer. Produtos que trabalhem beleza e poder. Que além da questão estética e da autoestima, proporcionem empregos, que permitam que o mundo todo veja o crescimento de uma marca voltada especificamente para cabelos crespos, com mulheres negras em todos os rótulos e propagandas, em todas as fábricas e salões.
No entanto, sua maior rival é Addie, uma mulher negra de pele clara (detalhe ficcional criado pela série) que faz tudo para atrapalhá-la desde o início. À medida que a protagonista faz sucesso e ultrapassa a concorrente, a rivalidade aumenta, gerando vários golpes e tentativas de derrubar Sarah, que agora se tornou a famosa Madam Walker. A série passa a impressão de que elas passaram anos se atacando e que, enquanto Sarah enriquecia, Addie ficava para trás e era derrotada. Em uma dualidade simplista de mocinha e vilã.
Acontece que, na vida real, não foi bem isso que aconteceu. Annie Malone (personalidade real que inspirou Addie) teve muito sucesso em sua trajetória. A partir da série, muitas pessoas pesquisaram e descobriram que Madam C. J. Walker foi a primeira mulher a se tornar milionária nos EUA a partir de seu próprio trabalho. Uma história impactante e que realmente merece ser conhecida.
Infelizmente, a série propositalmente alterou uma outra personagem que também trilhou um caminho brilhante e que merecia destaque por seu papel na indústria de beleza e no empreendedorismo negro do início do século passado. Assim, quase ninguém ficou sabendo que Annie também se tornou uma das primeiras milionárias do país. Filha de pais escravizados, ela estudou e dedicou-se especialmente às aulas de química. Conhecimentos que utilizou posteriormente na criação de seus produtos para cabelos. Empregou centenas de funcionárias, incluindo Sarah temporariamente (o que foi modificado na série), e prosperou incrivelmente, focando em dar cursos profissionalizantes e tornando-se filantropa da comunidade negra assim como Madam C. J. Walker.
A forma como foi retratada na série chamou atenção de forma negativa e gerou críticas por quem conhece sua história verdadeira. Além de não ter fracassado como o programa deu a entender, ela não negou emprego à Sarah, não a perseguiu até a nova cidade e não competiu com ela ao longo de toda a sua vida.
A série foi adaptada a partir do livro On Her Own Ground, escrito por uma descendente de Madam C. J. Walker. Claro que obras adaptadas têm liberdade para fazer algumas modificações, para decidir o que funciona melhor no novo formato. Afinal, é uma outra obra. No entanto, causa tristeza saber que a série da Netflix, ao invés de mostrar duas mulheres negras poderosas que alcançaram feitos incríveis em meio a tantas dificuldades, optou por só mostrar uma como bem sucedida e criou a outra como vilã, amparando todo o programa na rivalidade entre elas.
Afinal, quem ganha com a rivalidade feminina e com a disputa entre mulheres negras? Obviamente não são elas, que apenas perdem força e apoio. Muitos deixaram de conhecer e de se inspirar na história de Annie Malone, assim como até algum tempo atrás desconheciam a história de Madam C. J. Walker.
Então por que optar por apenas uma, se a história de ambas estava ali ao alcance dos roteiristas e caminhava junta em tantos momentos? Duas mulheres negras vencendo pareceu exagero? Acharam que perderia força se a história de uma mulher negra bem sucedida não fosse única?
Uma sociedade machista e racista cria e alimenta o mito tão difundido de que mulheres não se suportam, que não podem confiar uma na outra e que puxam o tapete da colega na primeira oportunidade. Cria-se assim a impressão de que apenas uma pode prosperar. Como se houvesse apenas uma vaga a se preencher e ela tivesse que lutar com unhas e dentes para que a posição seja sua e não da outra. Quando acontece de mais de uma ser bem sucedida, a história vem e apaga uma delas.
Afinal, para manutenção e crescimento dessa sociedade, as próximas gerações de mulheres (e especialmente mulheres negras) podem ter acesso a histórias motivadoras, com representatividade. Só não podem ser muitas. Apenas uma de cada vez, como migalhas.
Se até mesmo as histórias reais são alteradas para perpetuar a disputa entre mulheres e gerar seu isolamento, modificando fatos, pouco podemos esperar das histórias completamente fictícias, que estão 100% sob controle dos seus criadores.
Uma resposta em “Rivalidade feminina em A vida e a história de Madam C. J. Walker”
[…] A vida e a história de Madam C. J. Walker conta a trajetória real da primeira mulher a se tornar milionária nos Estados Unidos com seu próprio trabalho. Sarah sofria com queda capilar gerada por alergias e estresse e nada do que fazia resolvia. Foi nesse contexto que ela conheceu Addie Monroe e seus produtos para cabelos crespos. Percebendo o potencial do material, ela iniciou uma trajetória longa e árdua para criar sua própria marca e levá-la ao sucesso. Isso acumulou ao longo dos anos conflitos pessoais, problemas legais, dentre diversas outras dificuldades. […]