Quantas histórias conhecemos – sejam em obras audiovisuais ou na literatura – sobre a passagem da adolescência para o início da vida adulta? É disso que se trata, de forma bem resumida, a narrativa de amadurecimento ou, em inglês, de coming of age.
O processo de amadurecimento não é pontual, não se dá apenas por um evento, são processos que se somam e que acabam por afetar de uma forma revolucionária a nossa vida. É algo que “vem acontecendo” e de repente se transforma, como escreveu Ernest Hemingway, em “O sol também se levanta”: “gradualmente e repentinamente”. Pode até parecer que veio assim do nada, mas esse amadurecimento vem sendo construído.
Mesmo assim, esses pontos de virada importam! São, como escreveu Clarice Lispector, momentos de epifania. No conto Preciosidade da escritora, em Laços de Família, a vida da menina que só quer passar despercebida no seu caminho para a escola é alterada quando dois homens a tocam na rua. Ela paralisa, e então enfrenta a família e pede novos sapatos. Assim, como se tudo fosse repentino, mas o barulho de seus sapatos de madeira já a incomodava, ela só não tinha a força de exigir a mudança. O conto de Clarice é do mais puro cotidiano, passa-se e transforma-se por ritos de passagem banais, mas não menos importantes. Quem não lembra desses momentos transformadores em suas vidas – sejam eles grandiosos ou banais?
As narrativas de amadurecimento tratam de grandes temas, como pertencimento, amor, sexualidade, sexo, amizade, morte e perdas. É uma busca por identidade, por autoconsciência, por afirmação perante a si mesmo e em relação aos outros. É encarar tudo isso com a inconsequência, a intensidade e a ingenuidade da adolescência.
O amadurecimento, espera-se, que venha em um período, um tempo, uma época de vida – nem de forma anterior ao necessário, nem posterior à ordem natural das coisas.
Nas narrativas cinematográficas, o foco da história de amadurecimento é o crescimento de um protagonista, com destaque para o que leva o personagem a tomar decisões importantes que envolvem identificação de suas habilidades ou a definição de seus relacionamentos amorosos, familiares ou de amizade. A partir dessas definições, os ensinamentos ficam para a vida. São transformações e definições que envolvem o caráter das personagens, passeando por questões psicológicas e morais.
Há um termo em alemão que também caracteriza essas histórias de coming of age: o Bildungsroman, termo que vem das palavras Bildung (“educação”) e Roman (“romance”).
Em episódio do Podcast Tia Berta foi discutido todos esses temas – e mais – sobre filmes que tratam de forma central esse processo de amadurecimento de seus protagonistas. A partir daí, indicamos oito filmes dirigidos por mulheres com a temática coming of age. Confira as obras por ordem cronológica de lançamento:
As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola (1999)
O filme, baseado no romance de Jeffrey Eugenides, originalmente publicado em 1993, conta a história das cinco irmãs Lisbon, que são criadas de forma “superprotegidas” por seus pais autoritários e religiosos rígidos, no subúrbio de Detroit, nos Estados Unidos, em meados dos anos 1970. A narrativa é contada, anos depois, pelos garotos da cidade, que se encantam pelos mistérios das irmãs. Assim, a história é construída em flashback, recurso comumente utilizado em filmes de coming of age.
A irmã mais nova, Cecília (Hanna Hall), de apenas 13 anos, suicida-se (na sua segunda tentativa) e ao invés dos pais compreenderem que as garotas precisavam de mais liberdade, afeto e comunicação, as proibições apenas escalonam para pior. O filme, que tem como protagonista Kirsten Dunst, no papel de Lux Lisbon, fala sobre depressão e tristeza na adolescência, mas também sobre a privação e a punição de tornar-se mulher; lembrando assim outro filme desta lista que carrega similaridades com este: Cinco graças. As virgens suicidas é o primeiro longa-metragem de Sofia Coppola na direção.
As melhores coisas do mundo, de Laís Bodanzky (2010)
Mano (Francisco Miguez) e Pedro (Fiuk) são irmãos e acabam de passar pela recente separação dos seus pais. Durante essa ruptura da estrutura familiar, Pedro, o irmão mais velho, vê seu namoro acabar, e enfrenta uma depressão. Mano está incomodado com a nova relação do seu pai, que está se relacionando com o seu orientando Fernando. O protagonista desse filme de amadurecimento também está lidando com as suas primeiras experiências sexuais e enfrentando os problemas de uma escola cheia de intrigas e fofocas.
O filme trata de descoberta sexual, amizade, cyberbullying, bullying, depressão, suicídio, homossexualidade, drogas lícitas, sentimento de pertencimento, mudança, relação entre aluna e professor, relacionamento abusivo, separação e traição.
É interessante que Bodanzky navegou por épocas de vida em seus filmes: “Bicho de 7 cabeças” (2000) – juventude, “Chega de saudade” (2007) – velhice, e “As melhores coisas do mundo” (2010) – adolescência e “Como nossos pais” (2017) – vida adulta.
Pariah, de Dee Rees (2011)
Alike, ou Lee (Adepero Oduye), tem consciência sobre quem ela é e sobre quem ela quer ser. Ela é uma adolescente lésbica segura de si, inteligente e sensível, que não tem dúvidas sobre sua sexualidade, e está buscando suas primeiras experiências amorosas e sexuais – com o apoio de sua melhor amiga Laura (Pernell Walker). Ela também é uma ótima aluna, principalmente em relação às aulas de escrita, mantendo uma relação de apoio com a professora, que a instiga a ir mais fundo em suas criações literárias.
Lee também relaciona-se bem com o seu pai, sendo a sua parceira de basquete ou de lanches noturnos, por mais que a garota desconfie das horas extras do pai fora de casa. A relação com a mãe é mais complicada, pois ela está sempre cobrando de Alike uma posição e até uma identidade que não são as da garota. Com a irmã, há um apoio tácito, que emerge de forma mais explícita em momentos de crise.
O filme, assim, tem como foco essa relação de afirmação de Lee perante o mundo, mais até do que buscas e dúvidas internas. É a partir dessa confirmação frente aos outros de quem ela é e de quem ela quer ser que se dá o seu processo de amadurecimento. Não é mais fácil por isso. As relações travadas não são simples ou maniqueístas, não são apenas boas ou apenas ruins. Há dor nesse processo, porque Lee sabe que quando escolher esse caminho não terá mais volta. E assim acontece: quando afirma para os pais que é lésbica, a mãe definitivamente não aceita – inclusive agride a filha com violência. “Eu vou rezar por você” – é o que a mãe diz para a garota após uma tentativa de contato posterior a sua saída de casa. Esses cenários não são surpreendentes para Alike, afinal, ela já havia acompanhado o processo de abandono da mãe de sua amiga Laura. Talvez exatamente por isso, ela tinha tanto medo de se assumir em casa, ela queria postergar aquela partida. Porém, não é possível não ser quem é por tanto tempo.
O filme tem uma linda fotografia, assinada por Bradford Young, que foi primeiro diretor de fotografia negro a ser indicado ao Oscar nessa categoria por A chegada (2016). Pariah é o longa-metragem de estreia de Dee Rees. Em 2018, a diretora Dee Rees tornou-se a primeira mulher negra indicada ao Oscar na categoria Melhor Roteiro Adaptado por seu aclamado filme Mudbound (2017), que conta a história de dois homens voltando para casa da Segunda Guerra Mundial, lutando para lidar com o racismo e a vida pós-guerra.
Garotas, de Céline Sciamma (2014)
Marieme, ou Vic (Karidja Touré), tem alguns poucos caminhos propostos a ela, mas ela não quer nenhum deles. Ela quer decidir o seu destino, mesmo nos momentos de maiores dúvidas e desilusões. Ela não quer seguir a profissão de faxineira da mãe, ou ser agredida pelo irmão, ou ser acusada pelo bairro, ou assediada pelo chefe da gangue, nem mesmo casar com o garoto que ela gosta simplesmente para ganhar o título de “esposa”. Ela é capaz de se reinventar, mas a partir de seus próprios termos.
Destaque para uma dessas cenas de transformação de Mariema, quando ela está com suas novas amigas e todas dançam e cantam ao som de Diamonds, de Rihanna. É o recado que elas querem dar: elas merecem brilhar!
Céline Sciamma também é a diretora de Tomboy (2011) e de Retrato de uma jovem em chamas (2019).
Cinco graças (Mustang), de Deniz Gamze Ergüven (2015)
Cinco graças traz a atmosfera de As virgens suicidas de volta. Também temos cinco meninas, elas aqui são órfãs e moram com um tio e a avó. Elas passam a ser confinadas em casa após serem vistas brincando com garotos na praia. Mais uma vez aqui também parece que o tornar-se mulher (ou essa possibilidade que aparece ainda em um horizonte distante) deve ser contida, punida ou “salva” por um casamento. Assim, as meninas vão sendo cada vez mais presas enquanto casamentos forçados são arranjados.
Cada uma, porém, reagirá à situação de formas diferentes. A narrativa é contada pela perspectiva da mais nova, Lale (Günes Sensoy) que é quem menos quer se conformar à situação.
A diretora Deniz Gamze Ergüven nasceu na Turquia e foi criada na França. Cinco graças foi indicado à categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar de 2016.
Califórnia, de Marina Person (2015)
O filme, ambientado nos anos 1980, acompanha o coming of age de Estela (Clara Gallo). A garota tem um sonho – e está fazendo de tudo para alcançá-lo: visitar o tio Carlos (Caio Blat), de quem a menina tem uma profunda amizade e admiração, na Califórnia (EUA). Estela então convence os pais de trocar a “festa de 15 anos” pela tão esperada viagem. Os planos dela vão por água abaixo, no entanto, quando ela descobre que o tio está voltando para o Brasil.
Marina Person, em seu primeiro longa-metragem de ficção, fala sobre o que conhece: cultura pop, adolescência nos anos 1980 e música, muita música! O filme expõe os aspectos culturais, políticos e a sexualidade, com o início da AIDS, na década de 1980.
Lady Bird, de Greta Gerwig (2017)
Christine McPherson não quer mais aceitar o nome dado a ela pelos seus pais, agora ela é “Lady Bird”. A garota tem uma ânsia de viver, mas parece não saber exatamente o que isso significa. O filme é uma obra de coming of age muito característica. Lady Bird está tentando se encontrar no mundo, e ela acredita que esse encontro de si mesmo só será possível bem longe da mãe e de sua cidade – Sacramento. Assim, são essas duas relações (com a mãe e com a cidade) que vão desencadear de forma central os seus processos de transformação e amadurecimento.
Dirigido e escrito por Greta Gerwig, o longa foi indicado a cinco categorias no Oscar de 2018: Melhor Filme, Melhor Atriz Principal (Saoirse Ronan), Melhor Atriz Coadjuvante (Laurie Metcalf), Melhor Roteiro Original e Melhor Direção (ambas as indicações para Greta Gerwig).
Fora de série (Booksmart), de Olivia Wilde (2019)
Esse coming of age é todo delas: Amy (Kaitlyn Dever) e Molly (Beanie Feldstein)! O filme de estreia de Olivia Wilde transmite uma sororidade divertida entre as garotas, que são as “estrelas” acadêmicas da escola, mas que agora, nos últimos dias de aula, percebem que não aproveitaram muito seus anos estudantis. O estopim para essa “revelação” é que elas descobrem que colegas, que para elas só queriam curtir, também entraram em ótimas universidades. Por que então elas se privaram tanto? Assim, partem em busca de diversão e aventura para compensar o que não viveram.
2 respostas em “8 filmes sobre amadurecimento dirigidos por mulheres”
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