Este texto foi inspirado em um dos pontos que surgiram na discussão do livro do mês de abril do Clube Mulheres no Horror. Agradeço aos presentes no debate do livro. Quer saber mais sobre o Clube? Clique aqui e saiba como participar!
A maternidade é cheia de sentimentos conflitantes. Assim como muita coisa na vida, maternar exige afeto, perseverança, cuidado e amor, mas só é possível se há uma estrutura financeira, psicológica, física e social para tanto. Dito isso, o maternar possível depende de diversas circunstâncias que não estão necessariamente ligadas à mãe, ou seja, que não dependem apenas dela.
No caminho de desromantizar a maternidade podemos cair em armadilhas de que essas mães só se cobram muito, que elas precisam fazer terapia, precisam ter um tempo de autocuidado — que muitas vezes está relacionado a necessidades biológicas básicas. Essa armadilha é não observar e compreender o papel do coletivo na maternidade. Não basta somente terapia (que custa caro), parar de se cobrar e ter uma rede de apoio para poder cuidar de si. É necessário mais. É necessário mais políticas públicas, mais espaço para dividir as tarefas, mais igualdade de gênero, mais compreensão de todes de que bebês e crianças fazem parte da sociedade e têm direitos.
Assim, nessa discussão importante e necessária, podemos compreender o horror na maternidade: o abandono, o cansaço, a sobrecarga, o machismo, a biologização e tantas outras questões difíceis que perpassam o maternar. Nos filmes e séries de horror e terror, o sobrenatural, o terror psicológico e outras estéticas e abordagens narrativas estão presentes no arco dramático de mães.
A maior parte dos filmes que tem mães como protagonista é de terror psicológico e isso já nos sinaliza algo importante. Há filmes com mães monstruosas que, diferente da ideia de monstruosidade feminina como resistência, constroem mães cruéis, sem amor, assassinas loucas e todas elas as únicas responsáveis pelo trauma dos filhos ou pelo assassinato de pessoas. Por outro lado, temos mães corajosas que, como já é esperado pela sociedade, fazem de tudo para proteger os filhos de entidades perigosas.
As mães monstros são aberrações e, exatamente por serem assim, chocam os espectadores. A figura da mãe dominadora e cristã, como em Psicose (1960) e Carrie (1976), conversa com a ideia da relação causa-efeito entre o cuidado da mãe e problemas psicológicos. Se há algum serial killer, há problemas com a mãe — o famoso mommy issues. As mães carregam a total responsabilidade pela criação dos filhos e em como eles se portam na sociedade. Em Precisamos falar sobre Kevin (2011), Eva (Tilda Swinton), mãe de Kevin, passa boa parte do filme preocupada se a forma como se relacionou com o filho foi responsável pelo que aconteceu.
O cuidado ou, para se falar em narrativa de terror, o excesso de cuidado, também figura como construção de personagens de mães. A síndrome de Munchaüsen por procuração, por exemplo, tem as mulheres como a maioria dos perpetradores. Vincular a maternidade com cuidado é exigir que apenas a mulher cuide dos filhos e, muitas das vezes, há uma obrigação social em se ver apenas como cuidadora — não só de filhos, mas dos pais e outros parentes idosos. Afinal, pelo senso comum, mulheres sabem cuidar melhor das pessoas e a vida delas é resumida a cuidar, portanto, o cuidado também é explorado em narrativas de terror. Há, inclusive, um curta-metragem de Ari Aster sobre a síndrome de Munchaüsen por procuração. Tendo, claro, uma mãe como perpetradora.
Então, trazemos aqui seis filmes para debatermos a maternidade e o horror. São filmes que não necessariamente focam na maternidade, mas que têm mães como protagonistas ou coadjuvantes importantes para a narrativa.
Hereditário (2018), de Ari Aster
Definitivamente um dos meus filmes favoritos de terror e já dá pra perceber que talvez o Ari Aster goste de explorar a temática maternidade de alguma forma. Em Hereditário, a família passa a sofrer diversas intervenções nada convencionais após a morte da matriarca.
Além do falecimento da mãe, Annie (Toni Collette) precisa lidar com a morte repentina da filha mais nova. Não temos presente só o luto pela perda da filha, mas também o latente sentimento de culpabilização do filho mais velho pelo acidente terrível. Com o passar do filme percebemos que há uma herança maldita da mãe de Annie, que não proporcionou uma boa relação com a filha.
Com um marido alheio e um filho adolescente, Annie se vê em um crescente horror dentro da própria casa protagonizado por ela e pela família. Annie, como outras mulheres da família, aparentemente, carrega algo ruim.
Possessão (1981), de Andrzej Zulawski
Anna (Isabelle Adjani), após a chegada do marido de viagem, começa a apresentar comportamentos estranhos. De início achamos que é apenas uma relação extraconjugal da personagem, mas após os comportamentos erráticos se tornarem corriqueiros, o filme nos leva a uma ligação com uma criatura. Entretanto, para se fazer presente no processo de “criação” da criatura, Anna abandona constantemente o filho, apesar de em algumas cenas ela dizer ao marido que está cuidando dele ou até mesmo conversando e brincando com o filho.
Há, inclusive, uma cena – a única em que Anna está efetivamente sozinha – no metrô que carrega um desconforto terrível, apresentando, a meu ver, uma cena de aborto espontâneo. Realmente ficamos sabendo que Anna tem um amante e ela deixa claro para o marido que ele não a satisfaz sexualmente. Isso colocaria, talvez, Anna em uma posição na qual, para buscar prazer, é necessário se abster como mãe, apresentando a maternidade e o prazer sexual como antagônicos.
Ainda tratando do contraste, temos a figura de Helen, uma mulher interpretada pela mesma atriz de Anna, a professora do filho, que é construída com a ideia romântica “maternal”. Helen é tudo aquilo que Anna não é no momento: afetuosa, disponível e cuidadosa. Helen acolhe o filho, brinca com ele, permanece em casa por ele, cuida do pai e do filho. Anna, por sua vez, é a mãe que abandona, que rejeita seu “instinto materno”, para se dedicar a prazeres sexuais e rituais.
As boas maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra
Clara (Isabél Zuaa) é contratada por Ana (Marjorie Estiano) para trabalhar como babá para o filho que ainda não nasceu. Clara, por precisar do trabalho, aceita as condições de cozinhar e cuidar da casa antes de se tornar a babá do filho da patroa rica. Na narrativa, lidamos com duas maternidades: a de Ana e, após o filho nascer, a de Clara. Ana engravida após um relacionamento de uma noite com um homem desconhecido. A situação traz vergonha à família de Ana, uma vez que ela estava noiva de outra pessoa. Ana é levada pelo pai para São Paulo com o intuito de fazer um aborto forçado, mas decide não fazer e por lá fica.
Ana e Clara se relacionam, um relacionamento esquisito até, fundado em interesses não tão claros de ambos os lados. Ana decide ter o filho sozinha, não tem rede de apoio, não conta com a família. Ana usa salto alto, roupas de grife e bebe cerveja enquanto está grávida. Aparentemente a preocupação de Ana é se o filho é “normal”.
Sabemos, então, que Ana está grávida de um bebê-lobisomem, que, ao querer nascer, acaba matando a própria mãe. Clara se vê em uma situação completamente fora do normal e tenta abandonar o bebê-monstro, mas, ao ouvir o choro, pega-o de volta e o cria como seu filho, nutrindo um amor pelo menino-lobisomem, enfrentando tudo e todos para mantê-lo protegido.
Duas, talvez, podem ser as teorias por trás da decisão de Clara em não abandonar o bebê e decidir criá-lo: uma idealização de seu relacionamento amoroso com Ana; e uma obrigação materna de cuidar de um bebê. Em ambas as conjecturas temos a perpetuação de uma maternidade baseada no amor e no instinto. Assim, é possível questionarmos a maternidade como algo que perpassa o biológico, marcando o ser mãe como amor inato. Nos casos de adoção, como é possível observar na narrativa do filme, há um amor intenso por uma criatura que não é sua. O desejo de ser mãe, talvez, compense o amor por um monstro.
Relic (2020), de Natalie Erika James
Filme bom é aquele que traz muitas camadas de simbolismo para discussão e Relic é assim. Aqui tem um texto do Arte Aberta sobre esse filme discutindo o terror do envelhecimento. Agora trazemos Relic sob a perspectiva do maternar e das relações intergeracionais envolvidas — o maternar e o “vóternar”, assim como os conflitos difíceis entre mães e filhas. Ao ser avisada do desaparecimento de sua mãe, Kay (Emily Mortimer) vai até a casa de sua infância para acompanhar a busca. Edna (Robyn Nevin), mãe de Kay, reaparece e encontra não só a filha, mas também a neta Sam (Bella Heathcote). Daí temos três gerações de mulheres na mesma casa, cada uma com relações diferentes tanto entre si quanto com a casa.
Em Relic é possível perceber que a maternidade aproxima, mas também distancia as filhas das mães. Seja pelo momento da vida – adolescência, fase adulta -, seja pelas relações familiares fundadas em indiferença. A morte iminente de Edna transborda Kay de culpa. A culpa recai, principalmente, com a dificuldade e a sobrecarga do cuidado. E esse esmagamento de cuidado, se podemos colocar dessa maneira, pode ser discutido a partir da vida de mulheres que, além da exigência de cuidar dos filhos, precisam cuidar dos pais idosos.
Há, portanto, para essas mulheres, a inevitabilidade do cuidado não importa a esfera de relacionamento ou o momento de vida.
O babadook (2014), de Jennifer Kent
Esse é outro filme que entrou na minha lista de favoritos, não só pela estética bem interessante do terror, mas também porque eu senti profundamente o cansaço, o terror, a impaciência, o amor, a raiva, a tristeza dessa mãe. Em O babadook temos Amelie (Essie Davis) tentando sobreviver com seu filho de 7 anos, Sam (Noah Wiseman), após a morte acidental e terrível do marido.
Uma mulher ainda enlutada precisa cuidar sozinha de uma criança criativa e, assim como qualquer criança, obcecada por assuntos do imaginário infantil — monstros, heróis, princesas, dinossauros. Sam constrói armas do zero para se proteger dos monstros e sempre acorda à noite com muito medo. Amelie o acolhe, lê uma história para ele, mas acaba levando-o para sua cama. Amelie não consegue dormir com uma criança em sua cama, fica dias sem dormir, e, após uma das noites de medo do filho, lê o início do livro O babadook e acaba por, sem querer, aterrorizar ainda mais o filho — Amelie não sabia do conteúdo do livro, é importante pontuar.
Depois desse evento, o filho começa a ver o babadook em todos os lugares, entra em crise de ansiedade e Amelie, cansada e privada de sono por dias, pede desesperadamente ao médico de urgência algum remédio para que o filho consiga dormir. Temos, então, uma mãe e a privação de sono — não há com quem dividir o cuidado dessa criança, tudo recai em Amelie. Inclusive, em um momento no qual ela consegue sair do trabalho para ver o filho doente, prefere ir ao shopping e tomar um sorvete. Parece que aquele é o único momento real de descanso dessa mãe.
Com o filho finalmente dormindo, a entidade começa a aparecer para Amelie, e dali, vemos um espiral de acontecimentos horríveis. Na tortura de privação de sono, no luto, na sobrecarga, na responsabilização individual, temos uma mãe que fala e faz coisas terríveis, inimagináveis. Amelie, inclusive, não deixa o filho se aproximar das coisas do pai — a dor foi tão terrível que prefere deixar todas as coisas do marido no porão com o intuito de não ter acesso a nenhuma lembrança.
Amelie apela para a TV para distrair o filho, exige o reconhecimento do filho como uma criança saudável, tenta conversar e brincar com ele sempre que possível, mas Amelie é uma mãe sobrecarregada que não tem direito e nem apoio para se fortalecer. Tudo parece extremamente precário e não estamos falando de uma precariedade financeira. O horror do filme não está apenas na entidade que aproveita dos cantos escuros para assustar, mas também do limite ultrapassado dessa mãe afundada no cansaço, na privação de sono, na preocupação constante, do não ter pra onde ir, pra quem pedir ajuda. O horror da solidão de uma mãe.
Umma (2022), de Iris K. Shim
O filme Umma conta a história de Amanda (Sandra Oh) e da filha Chris (Fivel Stewart) e perpassa também um terror intergeracional. Percebemos logo de cara que Amanda e Chris têm uma relação muito próxima, na verdade até estranha para uma relação com uma jovem adulta, de fazer muitas coisas juntas. Aparentemente a relação funciona, mas esbarra no curso normal da vida na qual uma jovem adulta busca outros interesses e outros caminhos que não necessariamente convergem com os da mãe. Nesse processo conflituoso e difícil para Amanda, ela recebe do tio as cinzas da mãe. Daí começamos a adentrar na relação permeada de violência entre Amanda e a mãe.
O maior medo de Amanda é se tornar a mãe, mas com tantas mudanças surgindo em relação a Chris, Amanda se vê em uma espécie de “possessão” da mãe na qual questiona e faz Chris se sentir mal em relação à aplicação para a universidade. A culpa de Amanda carrega conflito pois sabe que precisou fugir da própria mãe porque não aguentava o sofrimento. Parece que o conflito surge quando sabe que precisou fugir, mas que a mãe ficou sozinha até a morte — já que o pai abandonou as duas algum tempo depois que vieram para os Estados Unidos da Coréia.
A vontade de se afastar da mãe é tão grande que até a cultura e seu nome coreano Amanda renega. Chris então se vê em uma dualidade: buscar sua individualidade ou permanecer com a mãe como porto-seguro. Amanda, inclusive, confessa a Danny (Dermot Mulroney) — o único amigo das duas — que começou a cuidar de abelhas porque Chris quando era criança ficou obcecada por elas. Amanda fez tudo aquilo para ver a filha feliz, permaneceu fazendo aquilo porque era algo que faziam juntas e assim pensou que iam ficar para sempre.
Amanda acaba por infligir muita dor na filha durante esse encontro forçado com as cinzas da mãe. No fim, percebemos que Amanda compreende a mãe, sabe que ela teve que largar tudo na Coréia para seguir o marido nos EUA, que ali ela não era conhecida, que não podia pedir ajuda para ninguém e, depois do abandono do marido, juntou toda uma raiva que não conseguiu processar e acabou por violentar a própria filha. Amanda entende o que a mãe passou, mas também sabe que ela não merecia passar por nada daquilo. Que sua mãe foi maltratada em muitas instâncias da vida e que por isso direcionou todo o sofrimento para ela.
Amanda entende, também, que, para não virar a própria mãe, precisa entender que o que a Chris está fazendo não é abandono — é ela buscando trilhar seu próprio caminho. Após enfrentar o espírito da mãe, Amanda entende a importância de permitir que sua filha divida uma vida com outras pessoas. Quando você se dedica tanto a uma criança, é difícil compreender uma vida sem cuidar de outra pessoa. Ao tentar se destoar tanto da sua mãe, Amanda acaba por concentrar-se na felicidade da filha, sem levar em conta que, assim como ela, há desejos, interesses e movimentos diferentes do que nossas mães querem para nós. Confrontar traumas e tentar dar uma melhor educação para nossas filhas são os desafios dos nossos tempos.